A relação particular da Junta Local com o produtor Fabrício Andrade do Cogumelos Umami não nos permite fazer um relato de viagem normal, com a descrição do itinerário, aspectos técnicos da produção, organizados em ordem cronológica (ainda que isso entre também).

Fabrício foi um dos participantes da nossa primeira feira na Comuna, e daqueles era o único com um pé na roça, sendo que fazer a conexão campo-cidade era uma prioridade, apesar de todos obstáculos. De forma um tanto inocente, acreditávamos que seria fácil identificar e trazer pequenos produtores do campo para a Junta Local. Mas a realidade é que o pequeno produtor vive à margem do sistema alimentar e deve fazer um esforço hercúleo para chegar diretamente ao consumidor final, tendo em vista a falta de mais políticas públicas, a consciência ainda baixa do mercado e todos os desafios de logística.

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Ter Fabrício era, do ponto de vista dos objetivos do projeto, um golaço para a Junta Local, ainda mais considerando a qualidade de seus cogumelos e o controle total dele e de todas as etapas no processo de produção. Chegamos a ele – ou ele chegou a nós – como fruto da serendipidade, como já relatamos aqui na Revista, mas, em suma: um dia recebemos a ligação de Fabrício, que soube da Junta através de uma daquelas obras refinadas do acaso – uma amiga cenógrafa do sobrinho ocupava um espaço no antigo coworking da Comuna. O texto da Junta o tocou. Ele havia largado a vida de engravatado no serviço público em Belo Horizonte para trabalhar com gastronomia e depois, via esse caminho, decidiu retomar a propriedade da família para cultivar cogumelos. Portanto, mais do que um produtor, ganhamos um amigo que acreditava no nosso projeto e decidiu apostar tudo nele.

A afinidade se revelava na prática. Feira de sol, feira de chuva, lá estava Fabrício, encantando o público com seu produto, sua simpatia e sua mineiríssima disposição de contar a história de tudo. A participação de Fabrício era a concretização do ideal da cadeia curta – sem intermediários, o produtor ganha e o consumidor ganha. Seus cogumelos logo se notabilizaram não apenas pela qualidade, mas pelo custo-benefício superior. O próprio nome e logo da empreitada surgiram de discussões com a Junta Local. Mas as dificuldades foram aparecendo: problemas para transportar e armazenar produtos, dificuldade para engajar Juliano e Júlio, seus auxiliares na produção, e o cansaço.

Nesse meio tempo foram diversas visitas ao Sítio do Piriquito, perto de Perdões, Minas Gerais. Apesar deste ser o quarto vídeo na nossa série Junta Local Vai, o material foi um dos primeiros a ser filmado, há quase dois anos atrás, antes mesmo da consolidação do formato, antes mesmo de saber se o projeto da Junta Local iria para algum lugar. E antes mesmo dessa viagem para filmar, houve uma primeira visita, resultante do impulso de conhecer a realidade de Fabrício.

Esta viagem aconteceu em novembro de 2014. Partimos no dia seguinte de uma feira. O número da estrada que pegamos e a rota escolhida são detalhes perfunctórios. Viajamos absortos na paisagem, pegamos o trem azul, o sol na cabeça, como na canção. Entre uma curva e outra, Fabrício acrescentava detalhes da sua história.

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Antes dos cogumelos, trabalhara como funcionário da Prefeitura de Belo Horizonte. Formado em direito, era responsável pela fiscalização da ocupação urbana e ambiental, lidava com a aplicação da lei, nem sempre a favor dos necessitados. Cansado do trabalho, largou a gravata e fez o curso de gastronomia do Senac em Barbacena. Fez alguns freelas na cozinha, até que começou a comercializar cogumelos, que foi como conheceu produtores da região e os meandros da relação entre restaurantes e produtores. Apesar do tino pelo comércio, o que falou mais alto foi a paixão pelo produto.

A antiga chácara da família, um terreno de mais ou menos 5 hectares com uma casa simples, onde até hoje estão penduradas fotos de churrascos e partidas de futebol com um Fabrício adolescente, estava abandonada. O pai havia sido funcionário do extinto Instituto Brasileiro do Café. Além do café, a região possui uma tradição de produção rural de pequena escala, com cafeicultores, fumicultores e pequenos produtores de gado de leite. Tudo isso entrou em declínio, ou então foi engolido pelo sistema alimentar industrializado. Fabrício tomou a decisão de se transformar em produtor, pensando no que queria para o seu futuro.

Na primeira visita ao Sítio do Piriquito conhecemos a equipe do Cogumelos Umami: o calado Juliano e o mais calado ainda Júlio. Juliano e sua família moram na propriedade e Fabrício apadrinhou Vitória, uma de suas filhas. O relacionamento não é de patrão, mas de parceiro, ou pelo menos uma tentativa de parceria, pois a dificuldade consistia, segundo Fabrício, em convencer que o trabalho dele nas estufas e na produção do composto – os dois pilares da produção de cogumelos – era crucial. Júlio, o Julião, é lavrador e havia trabalhado em diversas propriedades da região até encontrar ocupação estável com os cogumelos. Como numa das falas no vídeo, Julião se mostrou ciente de que os cogumelos ali no Sítio não levam porcarias nem veneno, motivo de orgulho.

Como bom anfitrião, Fabrício mostrou toda a região de Perdões, o vilarejo de Rio Vermelho, que em seu auge contou com uma bela estação ferroviária (hoje em ruínas) e a represa. Fizemos uma parada estratégica em Pouso Alegre, para conhecer Donizete, mentor de Fabrício e um dos maiores especialistas em shimeji do país. Apesar da grande produção, Donizete nunca quis trabalhar com a comercialização direta do seu produto, algo que renderia maiores benefícios financeiros, mas que, segundo ele só gera “dor de cabeça”… No caminho de volta, Fabrício fez piada: “Tá vendo, querido? Povo da roça não quer saber de dor de cabeça. É aí que estou me metendo. O povo me acha doido.”

A segunda viagem ao Sítio do Piriquito aconteceu alguns meses depois. Dessa vez iríamos filmar, mesmo sem roteiro. A equipe era composta pelos próprios organizadores da Junta Local e um cinegrafista local. Chegamos à noite, sob intensos relâmpagos. A filmagem começou cedo, apoiada por Marlon, amigo de Fabrício numa das câmeras. Fabrício recontou, agora para uma plateia maior, a história do Sítio e a dificuldade que foi conseguir montar as estufas, estruturas de madeiras cobertas por lonas que servem para criar as condições ideais de iluminação, temperatura e umidade para o crescimento dos cogumelos.

Como bem explicado no vídeo, Fabrício domina o processo de produção do composto, que é o substrato em que os cogumelos crescem. A qualidade deste composto e também do controle da umidade é o que explica a excelência do seu cogumelo. É prática comum utilizar compostos de baixa qualidade e também maior umidade para fazer o cogumelo “render”. Por mais trabalhoso que seja, Fabrício sempre rejeitou o “kit” de produção, em que composto, inóculos e demais chegam prontos, tal qual uma mistura de bolo pronta. Há pouco tempo soubemos que Fabrício atingiu a autossuficiência na produção do composto e ainda produzirá o composto de seus produtores parceiros, como Janaína, Alexandre, Luciano e Manu, produtores do entorno que complementam o portfólio do Umami com portobello, shiitake e cogumelo Paris.

No dia seguinte, mais filmagens. Filmamos o processo de compostagem, obtido através da prensagem de resíduos de plantações vizinhas, que passam por um processo de esterilização por fermentação. Soubemos do problema da seca dos riachos da região, que obrigou Fabrício a investir em poços artesianos pouco confiáveis. Apesar disso, nas estufas, esquecemos os problemas ao testemunhar a beleza de fileiras e fileiras de pétalas de shimeji salmão.

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Uma atração à parte da filmagem foi o catering. Fabrício chamou Tonha, conhecida da família, para fazer um lanchim e almocim. Por lanchim entenda-se nacos de torresmo e biscoitão (algo entre um biscoito de polvilho e um pão de queijo); por almocim entenda-se duas galinhas abatidas por Tonha para virarem galinhada, e feijão tropeiro. Nos refestelamos e tivemos que encerrar os trabalhos por algumas horas. Tonha de vez em quando manda lembranças na forma de porco na banha que Fabrício traz para a feira.

Ao longo da viagem, ainda conhecemos Aroldo, um criador de gado da região, que Fabrício promete trazer para a Junta, seguindo o novo caminho que vem desbravando para pequenos produtores da região.

A visita se encerrou com a presença de dona Marlene, mãe de Fabrício, a família de Juliano e Julião. Um momento comovente, um retrato passageiro dessa pintura que vai se completando com o tempo. Passados muitos meses, o Cogumelos Umami continua seu périplo. Fabrício ensaia novos passos buscando apoio para armazenar seus produtos no Rio, com um entreposto num lugar bem conhecido da Junta no bairro da Glória, e integrando Ana Augusta à sua equipe. As aflições em comum e as comemorações das conquistas seguem.

A história da Junta Local se confunde com a do Cogumelos Umami. Crescemos juntos. Através de Fabrício encontramos nossa vocação, e através da Junta Fabrício encontrou a sua. Nossos começos e fins estão imbricados e em constante fluxo. Através da vivência e diálogo, nos descobrimos. A Junta Local respira para dar ar a produtores como ele. Que eles continuem brotando, feito cogumelos.

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Crédito das fotos: acervo da Junta Local