Introdução por Thiago Nasser | Texto por Roberta Sudbrack

Roberta Sudbrack dispensa maiores apresentações. A chef (ela nos corrigiria para dizer: “cozinheira”) foi eleita em 2015 como a melhor da América Latina e seu restaurante, o RS, redefiniu a gastronomia contemporânea brasileira valorizando ingredientes brasileiros. Após o fechamento do RS, incrementou sua atividade e o alcance do seu trabalho com o Garagem, seu food truck e a participação em eventos, sem abrir mão da utilização de ingredientes artesanais de pequenos produtores. Mais do que uma chef, é uma defensora feroz destes produtos e reivindica que a legislação que regula sua comercialização precisa ser revista, dando o devido valor aos queijos, embutidos e outros produtos que são essenciais para a gastronomia brasileira. No último Rock in Rio, teve 1 tonelada (160kg no evento + aproximadamente 900kg de todo o estoque) de produtos apreendidos pela vigilância sanitária. Ela generosamente aceitou o convite da Junta Local para falar do caso e reafirmar sua defesa de pequenos agricultores e fazedores, nem que para isso seja preciso transgredir.

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Senti uma grande alegria quando recebi o convite para colaborar na Revista da Junta local. Uma iniciativa ímpar que une esforços, energias e pessoas em torno de um bem único e sagrado: o alimento. Quando comecei a pensar no que iria escrever, logo me veio à mente figuras icônicas como Jesus Cristo, Einstein, Isaac Newton, Galileu Galilei, Leonardo da Vinci, Santos Dumont, Paulo Freire, Steve Jobs, Joana D’arc, a garota paquistanesa Malala e tantos outros nomes cujo inconformismo nos trouxeram até aqui. Ao século XXI. Esses adoráveis transgressores usaram sua voz, sua ciência, sua mente, sua humanidade, sua vocação e sua força para nos mostrar que a realidade é de uma forma ou outra se assim quisermos. Somos nós que transformamos a realidade, então, podemos mudá-la. Sobretudo se o seu sentido tiver ficado preso nas entranhas do passado. Estamos unidos nesse momento – cozinheiros, produtores, pesquisadores, sonhadores – no inconformismo do atual universo do alimento, em que produtos de excelente qualidade e origem são considerados proibidos ou impróprios para o consumo, caso de muitos produtos artesanais feitos por pequenos produtores, simplesmente porque o nosso pensamento burocrático está estacionado nos anos 40.

É sob essa perspectiva que volto ao tema do descarte dos produtos artesanais cruelmente apreendidos na última edição do Rock in Rio. Nunca me achei acima de nada e muito menos do cumprimento das normas e das leis. Nunca perdi minha carteira de motorista por acúmulo de multas de trânsito. E nem tampouco o meu restaurante, o Roberta Sudbrack, que fez história na gastronomia do Brasil e do Rio de Janeiro, e não acumulou nada além de glórias. Uma delas, talvez a que mais me orgulhe, a declaração de uma diretora da vigilância sanitária do Rio de Janeiro, citando a nossa cozinha como referência na cidade: “Na cozinha da Sudbrack se pode comer até no chão, de tão limpo que é”.

Entendo que as normas sanitárias devem procurar um equilíbrio entre a saúde e a segurança dos alimentos e a valorização de práticas locais e tradicionais relevantes à biodiversidade e à diversidade sociocultural. Mas é preciso antes de mais nada bom senso e razoabilidade para que se possa separar o joio do trigo. A exigência de forma absoluta de um selo que diz respeito à circulação, o SIF, é descabida para produtos artesanais que possuem a inspeção sanitária estadual – já que esta, sim, é a inspeção e o selo que garante a segurança alimentar deste produto. Do contrário, seria como pensar que a população de Pernambuco estivesse protegida ao comer um queijo produzido naquele estado e que possui essa inspeção, mas a população do Rio de Janeiro estaria correndo um sério risco se consumisse esse mesmo queijo fora de Pernambuco. Surreal!

A verdade é que há alguns anos, pequenos produtores, queijarias e charcutarias artesanais vêm lutando para que a legislação sobre o assunto seja mais objetiva, menos burocrática e mais clara. O tema do alimento mobiliza qualquer cozinheiro vocacionado, como eu, e penso que a dignidade do que chamamos de cozinha brasileira atende pela seguinte fórmula: produto + produtor + identidade = patrimônio imaterial. Então pedir liberdade de circulação para o produto artesanal brasileiro não é um crime, mas sim uma extensão natural do meu trabalho.

A discussão envolvendo a necessidade do SIF é administrativa. Provavelmente tem sua utilidade em certos casos, mas não há como colocar todo mundo no mesmo balaio nesse caso. E certamente não pode ser usado como justificativa para jogar comida boa fora. Além disso, a legislação sobre o SIF é antiquada, de décadas atrás, elaborada para atender um contexto de Brasil que não faz mais sentido. Hoje todos os estados têm órgãos sanitários capacitados para conferir ou não certificados, selos ou carimbos que garantam a segurança alimentar de um produto.

Eu e todos os cozinheiros brasileiros sempre utilizamos esses produtos. Não há nesse momento espaço para hipocrisia ou covardia. Não há um só cozinheiro nesse país que faça cozinha brasileira, que possa bater no peito e dizer que na sua geladeira não haverá um produto artesanal sequer. Simplesmente porque a voz da nossa gastronomia é o produto artesanal. Nosso DNA está lá. Nossa rapa do tacho, nosso modo de ser e fazer, nossa identidade. Nosso afeto. Isso é o que define a nossa cozinha, a nossa existência e a nossa expressão.

Ao final de tudo, apesar do meu grito de dor, das noites que passei sem dormir relembrando todo aquele pesadelo, de todas as lágrimas que derramei, dos momentos em que essa dor foi tão forte, mas tão forte, a ponto de me fazer questionar – talvez pela primeira vez na vida – sobre a vontade de continuar respondendo positivamente a uma pergunta que sempre faço: “Quer ser cozinheiro?” Ao final de tudo, todos os alimentos, toda a história desses produtores e a minha de certa forma, foram descartados. Uma tonelada de comida, de um Brasil da melhor qualidade e dentro da validade foi jogado na vala. Cumpriu-se a letra da lei. Mas, certamente se jogou no lixo o seu melhor sentido.

Aí você para, respira, enxuga a última lágrima e se pergunta: “E agora? O que fazer?” São duas as respostas. A primeira é: Sim, apesar de tudo, eu quero ser cozinheira. E a segunda é simplesmente: Continuar a transgredir. Nos mantermos transgressores, sonhadores e guerreiros incansáveis nessa luta que é coletiva. Tão coletiva e tão poética como é a junção dessas pessoas, desses símbolos, desses modos, desses gestos, desses gostos… Desta Junta!

Transgredir para o bem ensina, tece, costura, cozinha, alimenta e Junta. E juntos somos muito mais fortes.

>> Este texto faz parte da edição #6 de 2017 da Revista da Junta Local <<
Crédito das fotos: capa: Samuel Antonini | outras: acervo da Roberta Sudbrack