Por Thiago Nasser

Esse ano, por causa da pandemia, fui poupado em boa parte do espetáculo multicolorido e “celofânico” de ovos pendurados nos mercados e lojas. Tradicionalmente, os impropérios contra a grande indústria saem ao topar com a cabeça nos ovóides, geralmente quando sou obrigado a passar por dentro dos túneis que lojistas insistem em arquitetar todo ano. Algum gênio do marketing com certeza sacou que se passarmos por um túnel de produtos nossa propensão a perceber e comprá-los é maior. As saídas mais escassas me pouparam das topadas e, francamente, o único túnel pelo qual gostaria de passar esse ano é o do tempo. Mas a tradição pascalina de desancar a grande indústria de “substâncias que vagamente remetem ao chocolate” será feita por escrito. 

E comecemos justamente por essa tecnicidade do nome. Se rolasse uma operação “Tocaia Local” muito provavelmente seria preso por difamação, pois de fato a legislação brasileira permite que qualquer produto com 25% de chocolate seja assim denominado. Aliás, não importa se esses 25% de chocolate sejam produzidos com cacau oriundo de fazendas ou de regiões do mundo que empreguem mão de obra infantil ou análoga ao trabalho escravo. Não importa se esse “chocolate” não seja fermentado adequadamente, seja incinerado mais que Café Pilão e vire uma substância cotada na bolsa de valores como “liquor de chocolate” e seja transportado em barris em navios capazes de interditar o Canal de Suez. E nem falamos dos outros 75% que podem ser compostos por gordura de palma, açúcar, emulsificantes, saborizantes e o que mais quiser. Tudo isso pode ser chamado de “chocolate” e o grande objetivo é garantir que um Kit-Kat no Brasil seja igual a um Kit Kat no Japão (mesmo que por lá existam mais de 200 sabores diferentes dessa bagaça) e que possa ser comprado ali no caixa com aqueles dois reais amarfanhados no seu bolso traseiro (que uma grande amiga chama de “dinheiro de bêbado”). Honestamente, quem nunca? Meu crime é achar que o nosso Chokito de cada dia ou ovo Diamante Negro jamais deveria ser chamado de chocolate. Estou disposto a participar do sequestro de executivos da Nestlé para que eles nunca mais exponham criancinhas a seus achocolatados e usem coelhinhos como parte de sua técnica de lavagem cerebral. Hackers dos executivos da Garoto, por favor enviem as mensagens do Telegram para mim, ok?
Enquanto isso, continuo vivendo perigosamente insistindo em chamar esses produtos de substâncias achocolatadas da indústria.  Vou continuar apoiando a produção e tráfico desse tal chocolate bean-to-bar, ou amêndoa a barra, que é feito com cacau de que é fermentado, refinado, conchado, temperado e cristalizado por gente que entende do babado e que se preocupa com quem produziu e de onde veio. Vou colocar um poster da Luiza Abram no meu quarto e olhar para ele enquanto degusto lentamente minha barra 70% do Rio Purus (ela usa 50% de cacau e 20% de manteiga de cacau – viu como a conta é fácil? – e açúcar, apenas). Vou comprar as barras do Jean, do Uma Doce Revolução, porque sei que o francês lá da Mantiqueira não só compra do bom do Sul da Bahia, mas conhece todos os ”uh-la-lás” do chocolate. Vou resolver as laricas com as criações fora da caixinha de bombom do Emerson do Quetzal, que chegam a levar até curry na composição – além das amêndoas de cacau lá das cooperativas do Pará. Aliás, falando em curry, você sabia que no começo do movimento bean-to-bar, originado na Califórnia, os moinhos usados para refinar o cacau eram os de pedra usados por indianos para fazer garam masala? Essa história a Nestlé não te conta. Mas enfim, vou parar aqui antes que me complique ainda mais no meu veredito de foodie, snob, palestrinha do local e afins. Que daqui a uns anos a Ministra Carmen Lúcia mude seu voto e me absolva.