Por Thiago Nasser

Seguindo a cartilha que guia a nossa missão, buscamos que cada barraca em nossa feira seja ocupada por um produtor. Nesse desenho quase cartesiano de “tipo-ideal”, os produtos expostos na barraca são todos oriundos do mesmo quinhão de terra ou da mesma cozinha e a sorridente produtora ali presente acompanhou todo processo da terra até a sua sacola. Com todas as dificuldades, somos capazes de garantir que isto aconteça boa parte das vezes.

No entanto, a realidade do sistema alimentar local é bem mais complexa, principalmente quando envolve a produção rural. A vulnerabilidade ao tempo (chuva, seca), os custos de produção dentro de regimes orgânicos ou agroecológicos, as dificuldades de logística (veículo, combustível, trânsito, tempo) e de venda (presença das feiras, entregas, prazos de pagamento) tornam a equação muito complexa para atuar sem intermediários e muitas vezes só é superada através de arranjos em que cada um destes fatores é superado através de cooperação e parcerias. Quando uma colheita é atingida por uma chuva, pode ser que o vizinho do outro lado da feira tenha produto (e lá na frente esse favor pode ser retribuído); quando os custos logísticos são altos para o volume de produção, pode fazer sentido se organizar em coletivo para fazer a “descida” para o centro consumidor; para garantir a diversidade na barraca, pode ser importante ter uma variedade maior de produtos de parceiros. Sem estas composições, arranjos, parcerias, improvisos, gambiarras e trocas a presença do pequeno produtor rural seria praticamente inviável em feiras da nossa cidade. A pandemia apenas agravou esta situação, tornando pequenos produtores muito mais avessos a riscos. Muitos voltaram a produzir de forma convencional ou preferem vender para atravessadores antes de se lançarem à venda direta.

Parte da nossa função da Junta Local é entender essa realidade. Por conta do nosso compromisso com a rastreabilidade, buscamos entender de que forma cada produtor rural viabiliza sua participação nas feiras. Mais que isso, a compreensão desta realidade nos capacita a colaborar na criação de alternativas.

E aí que entra a nossa feirinha de Laranjeiras, criada para reconstituir na Junta Local um espaço para pequenos produtores rurais, que dependem da regularidade e frequência das feiras para se planejarem e garantirem um volume de vendas que justifique o investimento em logística e deslocamentos. Mas mesmo assim, tem sido um enorme desafio manter a frequência de produtores deste perfil, mesmo que ladeados por outros empreendedores gastronômicos que ajudam a dar corpo à feira e a encher a rua. Nas muitas conversas com os produtores da nossa rede esses mesmos desafios são relatados.

Felizmente, desde o começo da feirinha, temos contado com a participação fixa do Mercadinho Santa Clara, um projeto que se aliou à Junta Local desde os tempos da Sacola da Junta. Liderada pelo agrônomo Eduardo Guimarães, toda semana o mercadinho já atraiu uma clientela cativa. Quem toca a barraca ali é o Victor, irmão do Eduardo, e sua companheira, Michele. Quem aparece de vez em quando por lá também é o Aleksandro, o Lekinho, agricultor que sempre viveu na roça. O que viabiliza essa participação não é apenas a cooperação em família mas também um arranjo de parcerias que garantem a estabilidade e variedade na oferta de produtos. Alguns produtos vêm do sítio da família de Eduardo, perto de Magé. Outros produtos, vem da Fazenda Orgânicos Brasil, um projeto de agricultura orgânica em que Eduardo participa como consultor.

Conhecer estas propriedades estava na nossa agenda fazia um tempo. O pretexto e a oportunidade surgiu numa semana de abril em que recebemos uma dupla de professores da Universidade de Toronto, Jayetta Scharma e Nino Bariola. Ela historiadora com pesquisa visual e sonora sobre mercados no mundo inteiro; ele sociólogo que fez uma tese sobre chefs no Peru e agora com pesquisa voltada para a cadeia produtiva do cacau e o chocolate bean-to-bar; Os dois são do Centro de Culinária da universidade canadense, que congrega diversos especialista para pesquisar a comida. Eles receberam Thiago Nasser, co-fundador da Junta Local, em 2023 durante a conferência internacional de mercados, para a gravação de um podcast sobre reações de organizações à pandemia. Desse encontro ficou a promessa de virem para o Rio de Janeiro, conhecer a Junta Local e os mercados da cidade de perto, e colher material para futuras pesquisas e uma nova temporada de podcasts, desta vez focada em iniciativas de soberania alimentar e conexão com o campo. Além de um extenso tour pelas feiras, queriam visitar um produtor da nossa feira. Estava aí a deixa.

Num dia de garoa fina subimos a serra até o distrito de Areal, onde fica a Orgânicos Brasil. Fomos recebidos por lá também pelo gestor da fazenda, Francys Vasconcelos, e pelo Alex, primeiro funcionário que já fez um pouco de tudo, mas recentemente vem se aventurando junto com Eduardo pelos plantios protegidos e produção orgânica. A fazenda na verdade é um projeto muito mais amplo, que inclui pecuária, turismo e lazer. Um pedaço da extensa propriedade se tornou uma espécie de laboratório de agricultura orgânica de alta performance. Com certificação do IBD, o objetivo é balancear a demanda por produtos específicos (como tomate) e o conhecimento técnico de Eduardo para maximizar a produção dentro dos preceitos da agricultura orgânica. No amplo galpão vimos as pilhas de adubos orgânicos – cada um rico num determinado nutriente – comprados no mercado ou produzidos na própria propriedade a partir do esterco do gado de galinhas. O processo de mistura de “fórmulas” e “gotejamento”, feito de tubos que vão direto para a estufa ali do lado, é feito de forma mecanizada e permitindo total controle. Vários testes são feitos para saber qual combinação é a mais eficiente para cada cultura (além de tomate, berinjela, pimentão, inhame, mandioca e jalapeño – sim, jalapeño, e logo falaremos disso), em cada época do ano. Francys nos mostra com orgulho na tela do celular os resultados já obtidos e explica a importância disso para viabilizar a produção e consequentemente aumentar o número de empregos gerados para moradores da região – todos com carteira assinada e participação nos lucros com o atingimento de metas.

De lá passamos para a estufa onde os pés de tomates esticam para o alto sustentados por cordas. O mesmo raciocínio técnico se aplica ali. Eduardo e Francys explicam os diferentes testes feitos não apenas com diferentes variedades mas com diferentes variedades que são plantadas com base na resistência de suas raízes a fungos e variedades de tomates que são “enxertadas” com base em sua resistência a pragas (que mesmo com as telas dão um jeito de invadir) e potencial comercial – é o paladar do mercado por tomates que dita o que é plantado. Eduardo explica que diferentes técnicas também foram utilizadas para tratar do solo entre uma colheita e outra, desde o plantio de beterrabas até o uso de uma técnica de “insolação” por cobertura plástica para esterilizar o solo. A técnica de insolação se prova mais eficiente, pois as beterrabas não atingiam um valor comercial para justificar sua presença na rotação. (Mais uma vez uma prova de como quem dita o que é plantado nem sempre é a natureza mas o paladar do mercado, que no Brasil, não inclui borscht).

Das estufas passamos a lavouras abertas que circundam a fazenda, nas partes mais planas e encostas menos íngremes do terreno montanhoso. Lavoura de berinjela e abobrinha, lavoura de inhame e lavoura de batata doce. Francys nos explica que, mesmo com toda tecnologia e eficiência, o principal desafio continua sendo a logística e transporte. Os caminhões que possuem não dão conta de fazer todo transporte, e os custos com combustível e manutenção muitas vezes fazem sua margem encolher, mesmo abastecendo não apenas feiras, mas vários grandes processadores que por sua vez abastecem grandes redes com linhas próprias de orgânicos. Ao mesmo tempo, também não há demanda suficiente para comprar veículos maiores e que seriam mais eficientes no transporte. Todos nós coçamos a cabeça ao ouvir sobre essa equação que não fecha. Se numa fazenda com toda essa tecnologia e investimento a coisa anda complicada, imagina para produtores de menor porte, que usam outras técnicas de “menor rendimento”, e que não contam com grandes investimentos e canais de distribuição consolidados. Ficam todos a mercê do grande mercado, homogêneo e cada vez mais sensível a cada centavo de diferença entre um orgânico e um convencional, entre um orgânico direto do produtor e um orgânico “genérico”.

Para fazer fechar as contas, uma oportunidade que surgiu para a Orgânicos Brasil foi o plantio de pimentas jalapeños. Para quem não está familiarizado, são aquelas pimentas verdinhas, não tão fortes, que, em conserva, fazem a festa em restaurantes mexicanos e quase mexicanos. O gosto por elas tem acompanhado o que chamamos de a “guacamolização da sociedade”. Quem nunca fez um encontro em casa com direito a guacamole e nachos de supermercado que atire o primeiro sombrero. Uma marca conhecida do estado, pioneira em nachos, está expandindo sua linha para outros produtos “mexicanos” e eis que encontraram na Orgânicos Brasil a disposição de plantar um lote inteiro de pimentas orgânicas. Um tanto estarrecidos, pois anos atrás era impossível encontrar um jalapeño hecho in Brasil, nos damos conta da situação: na zona rural fluminense, acompanhados por canadenses, mordiscando pimentas legitimamente mexicanas. É ou não é complexa a situação do pequeno produtor orgânico?

Viemos rindo dessas ironias no caminho de volta. No dia seguinte, fomos à feirinha de Laranjeiras. E lá estavam os tomates da estufa, aipins e abóboras do sítio de Magé de Eduardo, e algumas pimentinhas jalapeño.

 

Quer conhecer um pouco mais do trabalho do Mercadinho Santa Clara?
Você encontra eles todos os sábados na nossa feirinha de Laranjeiras.

Feirinha de Laranjeiras da Junta Local
todos os sábados, de 8h às 15h
na Travessa Euricles de Matos