Por Thiago Nasser

No dia 11 de março a Organização Mundial da Saúde declarou que o novo coronavírus havia atingido o status de pandemia. No entanto, com poucos casos no Brasil e apesar da tragédia anunciada pelos telejornais, confesso que até então tudo parecia apenas um zumbido pairando sobre a normalidade do cotidiano.


Estava mesmo preocupado com a obra da prefeitura que havia transformado a Praça Santos Dumont, onde no domingo, dia 15, faríamos nossa feira, num depósito de materiais de construção, com enormes peças de concreto enfileiradas e tapumes esparramados. Por causa disso, estávamos planejando várias mudanças no layout da feira. Estava sim preocupado com nossos primeiros testes fazendo entregas em casa da Sacola Virtual. De que forma isso impactaria a experiência das pessoas e nossa proposta de contato direto e deslocamento até o ponto de retirada?Afinal, o local sempre foi um lugar em que é possível estar presente. 

Ainda que racionalmente fosse possível dimensionar o tamanho da crise que se avolumava no horizonte pelas notícias e imagens impactantes que chegavam, acredito que por pertencer a uma geração que nunca enfrentou maiores cataclismas não tinha o equipamento mental para confrontar a situação. É como se houvesse um momento de suspensão entre o compreender e o agir. Sabemos que tsunamis existem, mas por nunca termos sido abatidos por um, o tsunami que se aproximava mais parecia uma projeção num enorme telão.

Mas foi então que os respingos começaram a ser sentidos. À medida que o dia da feira se aproximava comecei a ter uma sensação de estranhamento. Uma pandemia se aproximava e estávamos a promover a nossa alegre e movimentada feira. E se uma única pessoa estivesse contaminada? Começaram a chegar de produtores relatos de pessoas se recusando a provar amostras oferecidas em lojas.

Ligo para nosso contato na prefeitura para saber se existe alguma orientação em relação à realização das feiras. Nada. 

Mais notícias e perguntas chegam e um debate se instala entre a equipe em relação à realização da feira. Cogitamos fazer a feira, anunciando que será a última até que o momento volte a ser favorável. Em algum momento, caiu a ficha. Feira cancelada.

Na semana seguinte realizamos uma entrega da Sacola Virtual na Comuna, despachando parte dos pedidos pelos entregadores de bicicleta e moto, e entregando outra parte para quem havia escolhido fazer a retirada in loco. Adotamos alguns protocolos de segurança. Limpeza constante, espaçamento social. Mas a confusão ainda era grande e o clima tenso. É para usar máscara? Que tipo de máscara? Se alguém espirrar?  Havíamos decidido que seria, pela duração da pandemia, a última retirada presencial da Sacola Virtual.

Estava na conferência final das sacolas, função que sempre gostei de fazer, pois acontece diante do cliente, momento que permite uma conversa ou piadinha. Revi muitos clientes antigos. A maioria já parecia ciente da gravidade do momento e buscava respeitar todos os protocolos, mas os gestos ainda não estavam naturalizados. O tom era de despedida. Ao final do dia, com as pernas doces e a boca seca me dei conta de que, depois de ter participado de praticamente todas as entregas durante seus primeiros dois anos, acabei participando do que provavelmente seria a última naquele formato. 

As semanas seguintes foram um turbilhão. Explosão do número de pedidos na Sacola, novos locais de distribuição, inúmeros desafios logísticos demandando toda sorte de adaptação por parte da equipe e produtores. O solar das feiras deu lugar a uma nova meia-luz, captada pelas lentes de Guilherme Cerqueira nas fotos que acompanham este texto. Protocolos de segurança e atendimento ao cliente. Reuniões remotas com equipe e produtores, remodelação do modelo ajuntativo. Ajustes em toda a comunicação. Rotina virada ao avesso. 

Agora aqui estamos, cinco meses depois, tempo suficiente para a nova realidade ter se normalizado e ensaiar alguma sorte de reflexão.

Na Junta Local tivemos a sorte de sobreviver (até agora) a essa crise inédita. A união fez a força e conseguimos trocar o famoso pneu do carro andando. A Sacola Virtual serve como âncora enquanto as feiras não retornam. Na ausência do calor da muvuca dominical, temos lives, zooms e dias na cozinha. Boa parte dos produtores veio junto enquanto outros esperam o momento certo para reemergir. É certo que algo será diferente daqui em diante e que será importante refletirmos e dialogarmos sobre isso. 

Este é o motivo pelo qual decidimos reativar a nossa Revista, que andava dormente enquanto tocávamos feiras mil e outras iniciativas. Passado o turbilhão de mudança e reinvenção pela necessidade, queremos convidar todos a pensar sobre esse novo futuro e as relações que queremos tecer, principalmente em torno da comida. A reinvenção precisa continuar, agora pautada pela utopia e por uma nova apreciação de quem coloca a comida na nossa mesa.

Ainda que a linha d’água esteja alta, está na hora de reiniciarmos o debate, mesmo que a distância, cada um falando da sua toca. A Junta Local está passando por grandes mudanças e como sempre queremos que toda nossa comunidade venha junto. Por aqui falaremos com mais vagar destas mudanças e compartilharemos nossas divagações sobre este futuro através de olhares e vozes múltiplas. Compartilharemos receitas, histórias de produtores e visões sobre o sistema alimentar local. Não haverá o compromisso temático ou periódico que buscamos na última encarnação da Revista, queremos apenas ir compondo uma colagem do presente enquanto buscamos compreender o mundo que nos restará após esta vaga de mudanças. 

O que aprendi até agora é que o local não é um lugar. É um presente.