Por Alice Lutz

 

O conceito de heterotopia, elaborado por Michel Foucault, me tomou numa tarde nublada durante uma de minhas idas a cidade do Rio de Janeiro. Nesse momento de pandemia, garantir nossa capacidade de ressignificar e reapropriar os nossos espaços, como todas suas contradições – a essência do conceito do filósofo francês – é fundamental para nossa sobrevivência. 

Habito alguns espaços. Fisicamente, um deles é o Sítio São José, no município de São José do Barreiro, na Serra da Bocaina, do lado do estado de São Paulo, onde me refugiei da pandemia. Daqui consigo refletir e imaginar heterotopias nas tardes nubladas e exaustas do trabalho. Me pergunto quais são as heterotopias urbanas e sociais possíveis, em especial neste momento que vivemos. Naveguei nesse mar de outras utopias por um bom tempo. Suas águas me levaram a outros espaços que habito, como a Junta Local, que nos últimos anos reconhecidamente ajudou a construir novas possibilidades. 

Resolvi ler e estudar as 129 publicações realizadas na revista da Junta ao longo destes anos – postagens que confesso não ter acompanhado nas datas de publicação. 

De alguma forma, ler todas as publicações me fizeram passear por primaveras passadas. E, além de enorme alegria, sentir algumas dores.

No dia 28 de abril de 2014, foi publicado o primeiro material sobre o nascimento da Junta Local com uma reunião de fotos da primeira feira. Alguns meses depois, uma nova publicação ainda sobre a primeira feira trazia as seguintes palavras sobre o local escolhido para nascer: “O lugar não poderia ser melhor e mais apropriado: a Comuna em Botafogo. Já virou lugar-comum falar que a Comuna sai do lugar-comum. O espaço é aberto e dinâmico, a proposta é divertir e remediar, brincar e provocar. E a Comuna alimenta. O restaurante e bar começaram tímidos, mas as iniciativas criativas se multiplicam e a casa se consolida como motor da necessária mudança da cultura alimentar da cidade. E a Comuna alimenta a cabeça promovendo debates e outros eventos em torno da comida”.

Ter nascido na Comuna não foi por acaso, até porque um dos idealizadores da Junta, Bruno Negrão, é também sócio de lá. Recentemente, com grande tristeza recebemos a notícia do fechar de portas da Comuna. 

Quando soube da notícia escrevi um texto e dele destaco aqui um trechinho:

“A Comuna é a rua dentro de um espaço. É abrigo enlaçado quando fora não cabe. Quantas vezes refúgio quando eu achava que não tinha lugar pra ir.”

Lembrei de Luiz Antônio Simas falando sobre “terreiro” e sobre “terrerizar” espaços.

A Comuna era um terreiro pra mim. Um terreiro que eu não tinha na minha cidade. Era minha casa. Era a certeza de sempre poder chegar e ser abraçada. Foi o último lugar que estive antes de começar a quarentena. O último abraço livre que eu dei.

Quantas mordidas perfumadas, danças, encontros, beijos, abraços.

A Comuna é exemplo.”

Naveguei da Junta para a Comuna e foi se tornando mais clara a heterotopia que pode nos servir de âncora no mar revolto. 

O fechamento da Comuna representa um renascimento nosso. Uma necessidade nossa, coletiva, de encontrar novas formas de resistir. Uma obrigação e um dever de reconstruir este espaço que já foi e ainda deve ser: a rua, o teatro, a praia, a Comuna e o carnaval.

É bastante simbólico, justo agora que não temos a rua, perder o que para muitos, mesmo que como uma bolha, representava a rua em espaço fechado.

Não era só a Comuna que fechava com aquela notícia. Era um respirar que eu não conseguia mais encontrar.  

Era como se morrêssemos mais um tanto. Ainda vivemos uma realidade assustadora de mortes diárias por conta da pandemia do COVID 19.  Não, não passou. E não está tudo bem.  E é importante que tenhamos essa consciência. E que nos responsabilizemos pelos fatos.

E não era só a Comuna. Era uma luta que perdíamos. E não era só a Comuna. Era uma liberdade que perdíamos. E não era só a Comuna.

É sempre bom lembrar que o fim também tem importância no papel de existir. Fins são namorados de recomeço. E por mais difícil que pareça ser. Sempre abriremos outra porta, encontraremos outro beijo, outro espaço, outra blusa velha, outro banco, outra dança, outro gato, outra cozinha, outro talher e seguiremos a contar a nossa história. Que por sabedoria heterotópica, é navio no mar do coletivo.

Logo de cara no prefácio de seu livro  “A Revolução das plantas” o italiano Stefano Mancuso  diz assim:

“A organização anatômica complexa e as principais funcionalidades da planta requerem um sistema sensorial bem desenvolvido, que permite ao organismo explorar o ambiente de forma eficiente e reagir de imediato a eventos potencialmente prejudiciais. Assim, para utilizar os recursos do meio ambiente, as plantas se valem, entre outras coisas, de uma rede de raízes refinada, constituída por ápices que se desenvolvem de forma contínua e exploram ativamente o solo. Não é por acaso que a internet, o próprio símbolo da modernidade, é construída na forma de uma rede de raízes. Quando se trata de força de inovação, nada se iguala as plantas. Graças à evolução – que as levou a desenvolver soluções muito diferentes daquelas encontradas pelos animais –, elas são, desse ponto de vista, organismos muito mais modernos.

Seria bom levarmos isso em conta ao projetar nosso futuro.”

Sinto que remamos em uma canoa que por vezes parece furada. Navegar nesse mar que também é rio, potente de brasis em vida, é onde me compreendo planta enraizada na transformação coletiva e heterotópica que é ser e formar a novidade em forma de “comuna”, que por essência ajunta.
imagens Thiago Nasser