Por Thiago Nasser

Em julho de 2017, nesta mesma Revista da Junta Local, Marcela Correia, do K. Probióticos, fez um relato da nossa visita da recém inaugurada fábrica da Quetzal.

O fascínio de conhecer uma legítima fábrica de chocolate vinha acompanhada por um ponto de interrogação: o que muda na vida da produtora quando ela “cresce”? Produzir num galpão ou cozinha externa, contratar funcionários, expandir os pontos de venda.  De que forma todas estas mudanças seriam encaradas? De que forma manter intactos a paixão e o cuidado por todo processo e resultado que caracterizam o fazer artesanal? Escala e volume são compatíveis com qualidade? São os dilemas clássicos do crescimento, mas que agora passaríamos a lidar na pele e de forma conjunta, estabelecendo uma espécie de jogo de espelhos entre os produtores da nossa comunidade e a própria Junta Local.  

Até certo momento, nosso universo era quase que exclusivamente populado por gente que havia começado recentemente, embalada mais por sonhos do que por planilhas e planos de negócios. Por outro lado, depois de alguns anos de feira e Sacola Virtual, testemunhando o espaço conquistado coletivamente, sabíamos que era inevitável que em algum momento a noção romântica da produção caseira se confrontaria com a realidade do crescimento e profissionalização de cada projeto. Para manter os sonhos vivos seria necessário botar o pé no chão. 

Dois anos depois seria a vez do K. Probióticos, de Marcela, Rodrigo e Élide aterrarem num galpão em São Cristóvão, uma antiga fábrica de etiquetas para roupas, para iniciarem uma nova fase do empreendimento, reconhecendo que o que havia começado como um hobby passaria a ser uma opção de vida. (E continuando o jogo de espelhos, foi para o galpão do K para onde a Junta Local cresceu para ampliar sua capacidade de distribuição de pedidos online durante da pandemia.)

Fomos visitar imbuídos pelo mesmo espírito de encantamento e interrogação, mas desta vez com o K. Probióticos como objeto. Quem nos recebeu por lá foi o famoso trio pioneiro do kombuchá na cidade. Estavam acompanhados pela pequena Eva, cria do casal Marcela e Rodrigo, Sílvia, a mãe dos irmãos Rodrigo e Élide, e também Wesley e Miguel, recém-contratados funcionários. Ronaldo, o pai, estava fazendo entregas em algum lugar. Portanto, o empreendimento continuava familiar, mas expandia. 


Logo na entrada um pallet com uma torre de garrafas, em seguida a área de produção “lacrada” do restante e climatizada, permitindo um controle mais fino na produção. Ainda que uma garrafa explosiva aqui e acolá ainda façam parte do negócio, suas receitas e culturas probióticas estão bem mais domadas. As panelas de produção de 45L deram lugar a diversos panelões de 200L. Com seu jeito de professor, Rodrigo fala sobre os drywalls que ergueram e os novos processos de envase e arrolhamento. Ao final da linha, um caleidoscópio de garrafas coloridas aguardando despacho. Nessa área fomos apresentados  à rotuladora, o equipamento mais caro adquirido pelo K.

“Tivemos que importar da China, o equipamento ficou meses parado no porto. Quando finalmente chegou aqui nos demos conta que não poderíamos usar ainda, o manual estava todo em chinês e para operar teríamos que trazer um representante da importadora de Curitiba. Nos viramos com um tutorial que encontramos no YouTube“, explicou Rodrigo. “Antes era preciso rotular cada garrafa manualmente. Tem coisas que não tem preço, rotular com uma máquina é bem melhor que rotular a mão”, completou Élide.

Certamente, os tempos de amadorismo, produção caseira num apartamento em Copacabana e num pequeno galpão em Botafogo ficaram para trás.  A adaptação não se faz sem algumas concessões: “Queremos chegar nas pessoas com um preço legal, mas isso significa pensar em muitas coisas, preços, fornecedores e para fazer isso é preciso aumentar a produção, trabalhar com pontos de venda diferentes”. Isso sem falar nos solavancos da crise econômica que já se sentia antes mesmo da pandemia.

“São muitos os momentos difíceis, mas a confiança que temos um no outro e saber que queremos a mesma coisa no final é o que nos mantêm, ser família, ter intimidade, ajuda muito.  

Marcela complementa: 

“Mesmo que empresarialmente não tenhamos sempre tomado as melhores decisões, nosso crescimento foi feito de modo que a gente mantivesse o que a gente acredita. Não nos assustamos no processo, a gente fazia o que dava e se conformava”. As suas palavras ecoam o que havia escrito em seu relato à vista do Quetzal:

“Uma produção artesanal é uma produção cujas escolhas humanas estão sempre presentes e sobrepõem-se ao funcionamento das máquinas. As máquinas ajudam e aumentam a produtividade, mas em nenhum momento substituem ou automatizam um processo que deve ser feito por mãos, cabeça e coração. Ser um pequeno produtor é mais do que somente a escala de produção, que pode variar da cozinha de casa até uma fábrica.

E nesse ponto voltamos a Emerson, que dois anos antes havia se mudado para a fábrica em Bonsucesso com a entrada de um novo sócio-investidor. Alguns meses atrás, trocamos mensagens, na esteira e uma recuperação dele de uma internação por causa da Covid-19. Nesse diálogo, soube de sua saída da fábrica e do desejo de uma volta às origens, que passava por um retorno à Junta Local. 

“Na verdade, o coronavírus foi o estopim, o crescimento me deixou cansado, poderia ter crescido de forma mais saudável. Comecei a ter divergências com a parte administrativa, com a forma de nos inserirmos no mercado, [que exigia] correr com produção para suprir demanda”. 

Para o engenheiro elétrico que sempre prezou pelo controle de todas as etapas de produção e trabalhava com a esposa Andrea, o processo se tornou desgastante, apesar de ter tomado a decisão originalmente por causa do sonho de poder democratizar o acesso ao chocolate bean to bar: “O pequeno quer crescer, é como um filho que você quer botar para o mundo, produzindo em casa você vai até certo ponto, e você quer que as pessoas possam comer chocolate bom”. 

No entanto, ele pondera: “para você estar numa gôndola de supermercado, você tem que ter um preço muito baixo” e com humildade conclui com algumas lições: 

“Se você sentir que está perdendo a mão em relação ao que você fazia tem que parar, sair da zona de conforto, ouvir clientes, colaboradores, tem que saber delegar bem, treinar uma equipe, é um investimento não é um gasto”.

Desde que saiu da fábrica, é notável a empolgação na voz de Emerson e seu prazer no recomeço, em que voltou a produzir em casa, mesmo que a produção e equipamentos estejam espalhados em três casas diferentes, e planeja um recomeço tendo como bagagem as lições do período em Bonsucesso. Assim fica mais fácil exercer a verve criativa que resultou numa enorme variedade de chocolates e o artesanato muito técnico da torra, mélange, temperagem e outros processos para se chegar à barra perfeita: “não é só misturar tudo”. 

É interessante notar que nesse percurso de crescimento, os contatos entre Emerson e o pessoal do K foi intenso.  Recentemente, numa visita do chocolatier à fábrica dos colegas em São Cristóvão, notando algumas geladeiras ociosas, Emerson fez uma proposta de compra, pois necessitava de uma para colocar os tabletes para descansar ao longo do processo de temperagem. Rodrigo recusou a oferta, preferindo oferecê-la como presente. O eletrodoméstico foi levado na “gorda”, como Emerson chama carinhosamente sua velha perua da Chrysler, até sua casa, onde foi caprichosamente limpada para receber chocolates. 

Emerson está feliz novamente. 

Esse texto é a primeira parte de uma série em que abordaremos a questão do crescimento dos produtores da Junta Local. Ele se baseia em visitas e entrevistas feitas em 2019 mas também em relatos mais recentes sobre os desafios trazidos pelo coronavírus.

Imagens na fábrica do K. Probióticos tiradas pelo Samuel Antonini.