Texto da colaboradora Marcela Correia, produtora do K. Probióticos

Recentemente, mais precisamente desde outubro do ano passado, a Quetzal, marca de chocolates que faz parte da Junta Local, iniciou uma nova etapa na sua jornada e abriu uma fábrica. O chocolate elaborado pelo Emerson Gama, outrora feito na cozinha da sua casa, passou a ser produzido num galpão industrial, com um moinho de granito rosa dos anos 40 revitalizado pelo próprio Emerson. Desde então, estivemos ansiando pelo nosso dia de visita à fantástica fábrica de chocolate.

O que mais ansiávamos, no entanto, não era exatamente um encontro com o Willy Wonka. Por mais fantástico que seja o personagem do filme, Emerson, um ex-engenheiro elétrico do Aeroporto Galeão, amante de um bom chimarrão e uma boa cerveja artesanal (Hocus Pocus preferencialmente), que largou a vida de fios e conexões para dedicar-se a grãos de cacau, maquinários adaptados, tempos de cura e fat blooms (falaremos sobre tudo isso ao longo dessa matéria) em pleno subúrbio escaldante carioca não deixa nada a dever. Além de conhecer o Willy Wonka de Bonsucesso, queríamos mesmo entender todo o processo artesanal de se fazer chocolate e, mais ainda, queríamos entender como o processo se manteve artesanal com a ampliação da produção.

Muita coisa mudou na Quetzal do ano passado para cá. A empresa familiar, constituída por Emerson, sua esposa Andreia e seus filhos, começou numa cozinha de 8m². Na época, os grãos de cacau eram moídos num pequeno moinho elétrico que cabia em cima de uma bancada de cozinha e fazia alguns pares de quilos por vez. Para participar de uma feira da Junta Local, o casal virava noites preparando suas barrinhas, pois cada leva produzia uma quantidade muito limitada de unidades. Hoje, o moinho de pedra revitalizado tem capacidade de fazer em torno de 100kg a cada leva. Mas, como não existe bônus sem ônus, a ampliação da escala resultou em algum engessamento da produção. Fazer chocolate em escala doméstica tinha lá seu ponto positivo. A capacidade do Emerson de criar sabores inusitados era vasta: já teve até chocolate com bacon e chocolate com batata frita. Hoje, numa fábrica, não é tão simples e espontâneo produzir novos sabores. Cada novo sabor precisa de um novo processo de registro, elaboração de um rótulo e outras burocracias mais. O mesmo se dá quanto a necessidade de escoamento da produção. O crescimento implica em novos custos e a marca muitas vezes se vê precisando se abrir para novos tipos de pontos de venda e condições de mercado. No fim do mês, as contas a pagar de uma fábrica não se comparam às da cozinha de casa.

Além desse enrijecimento da produção e da forçada ampliação da política de vendas, o aumento de produção, ou a mudança de uma produção de escala doméstica para uma produção de escala industrial muitas vezes pode significar alguma perda de qualidade do produto devida a automatizações de processos ou ao sacrifício de alguns purismos insustentáveis em uma fábrica.

A primeira realidade com a qual nos deparamos diante desta e de outras fábricas de pequenos produtores artesanais foi justamente a de questionar parâmetros como “escala industrial”. Seria toda produção feita em uma fábrica necessariamente uma produção industrial? Neste caso, poderíamos dizer que todas as escalas industriais são similares? E aí estaríamos colocando no mesmo barco pequenos produtores como a Quetzal e os grandes da indústria de chocolate, desses que fazem praticamente todos os chocolates cheios de açúcar que comíamos na infância e que ainda povoam massivamente as prateleiras das lojas. Para entendermos melhor porque não colocamos as barras da Quetzal no mesmo hall das barras industrializadas e para visualizarmos com mais clareza que nem toda produção que sai de uma escala doméstica para uma fábrica é necessariamente uma produção em larga escala, tome os parágrafos a seguir como se fossem um belo ticket dourado, um convite a embarcar conosco no fantástico mundo do chocolate bean-to-bar.

A produção de um chocolate bean-to-bar, ou seja, de um chocolate produzido do grão até o tablete, começa, obviamente, com o grão do cacau. Na Quetzal, os grãos foram selecionados pelo Emerson, que elaborou um blend de alguns tipos diferentes de cacau. Este blend é, portanto, único da marca. O nome completo da marca é Quetzal Chocolate de Origem e a razão para isto está justamente no cacau. O “de origem” refere-se ao fato do cacau utilizado ser de origem controlada, ou seja, a equipe da Quetzal sabe exatamente de onde vêm os seus grãos. Cada saca dos grãos que compõem o blend da Quetzal vem de uma determinada fazenda com diversas certificações da zona cacaueira da Bahia. O Emerson já visitou a fazenda e confia nos métodos de produção adotados por eles.

Além dos grãos, as barras levam também açúcar demerara orgânico ou açúcar de coco e manteiga de cacau. O uso da manteiga de cacau se dá porque o chocolate precisa ter pelo menos 42% de gordura para se tornar o chocolate tal qual o concebemos, em tabletes sólidos. Abaixo disto, ele não ganha consistência e fica líquido. Para explicar melhor esta questão, permita-me uma breve digressão histórica de fatos ensinados pelo Emerson — que, diga-se de passagem, é um grande interessado por história e mitologia — durante a nossa visita. O chocolate surgiu com os Astecas em forma líquida. Tratava-se do Cacahuatl, nome que significava “água amarga”. O cacau era moído, colocado em água quente e acrescido de especiarias como canela e pimenta, resultando numa bebida bastante amarga e ainda bem diferente do que temos hoje em dia como chocolate. O chocolate passou muito tempo existindo somente em forma mole, pouco sólida. Somente no final do século XVIII, com o advento da prensa hidráulica, foi possível separar a manteiga de cacau da parte sólida. Mais manteiga pode então ser adicionada à massa do chocolate, aumentando o seu teor de gordura, dando firmeza à massa e criando o chocolate em tablete.

Para chocolates com menos de 80% de cacau, portanto, faz-se necessário adicionar mais gordura além da já presente nas amêndoas do cacau. Esta fonte de gordura, em chocolates artesanais bean-to-bar, é a manteiga de cacau. É ela que contribui para o aroma da barra, aquele cheirinho característico que deixa água na boca. Mas a manteiga de cacau é um produto caro e por isso um tanto ausente na indústria dos chocolates. Segundo Emerson, até os anos 60, mesmo os chocolates industrializados prezavam por um certo padrão de qualidade. Depois desta época, as empresas passaram a negligenciar a qualidade em favor do lucro e com isto algumas modificações surgiram no que ele chama de “chocolate de combate” — esses chocolates comerciais cheios de açúcares e outros aditivos.

Na indústria, a produção do chocolate é segmentada: existem as indústrias que produzem o insumo, ou seja, a massa de cacau, e as que produzem os tabletes, ou o chocolate em si. A massa industrial é feita sem a manteiga de cacau, apenas com a parte sólida dos grãos (comprados pela indústria, aliás, sem distinção de qualidade; qualquer tipo de grão que uma fazenda de cacau produzir entra nessa jogada) acrescida de outra fonte de gordura para substituir a manteiga, que em geral é o óleo de palmiste. Toda a manteiga de cacau previamente contida nos grãos é retirada e vendida separadamente para outras finalidades, pois trata-se de um produto de primeira qualidade utilizado para vários fins, inclusive pela indústria cosmética. O óleo de palmiste, ao contrário, é uma gordura barata, hidrogenada e bastante controversa. O cultivo da palma para fabricação do óleo para a indústria alimentícia está vinculado ao alarmante desmatamento de floresta nativa no sudeste asiático, sua zona de maior produção mundial. É importante que fiquemos atentos se quisermos evitar o consumo de produtos com este óleo, aliás, pois o nome “óleo de palmiste” dificilmente figura no rótulo desses chocolates industrializados. Neles aparece somente “gordura vegetal”, sem nem especificar que se trata de uma gordura hidrogenada.

Mas voltemos aos grãos. Os grãos chegam na fábrica e ficam em um estoque com temperatura e umidade do ar controladas. Isto se dá porque qualquer saca de grãos de cacau vem com ovos da chamada “mariposa do cacau”, um pequeno inseto que vive nas plantações do fruto. Caso a temperatura suba para além de 24º C e a umidade passe de 70%, os ovos eclodem e a sala de estoque se enche das pequenas e inofensivas mariposas. O controle é muito simples: um bom ar-condicionado e um termômetro que mede a temperatura e umidade do ar sempre ligados. Mas o que é interessante neste quesito é que para que a temperatura não suba é bom evitar falar no local de estoque dos grãos de cacau. O cuidado pode soar um pouco ritualístico: perante o cacau, a solenidade do silêncio. Não preciso dizer que não foi bem isso que fizemos quando fomos num grande grupo cheio de curiosidade visitar a fábrica. Logo vimos a temperatura e a umidade subirem e saímos do estoque assustados com a possibilidade de deixar para trás um cômodo repleto de mariposas vindas direto da Bahia! Mas não precisa ter medo de sem querer comer uma mariposa na sua barra de chocolate. Na torra, passo seguinte da visita da fábrica, os ovos todos se queimam e somem. Seguimos então a nossa jornada além-estoque, para a produção em si do chocolate.

As amêndoas de cacau chegam na fábrica após serem fermentadas e secas, mas ainda não torradas. São bem uns sete dias de fermentação e uns dez de secagem ao sol. A torra é um dos processos que garante uma escolha autoral do sabor do chocolate. Os grãos são separados manualmente pela equipe da Quetzal por tamanho para que a torra seja uniforme. Grãos de tamanhos irregulares torrados juntos resultam em torras igualmente irregulares: os maiores, menos torrados; e os menores, torrados demais. A torra, na fábrica da Quetzal, é feita com uma máquina de torra de café adaptada por eles para torrar amêndoas de cacau. A torra é suave, não passa de 120º C, e é isso que determina a complexidade de sabores da barra. Na indústria, torra-se a 350º C, numa tentativa de disfarçar e equalizar a má qualidade do cacau. Os grãos ficam então bastante escuros e muito amargos. Para amenizar o impacto dessa forma de produção, vem a propaganda, que incute no consumidor que quanto mais amargo, mais sofisticado o chocolate é. Não é bem assim. O correto seria dizer que quanto mais intenso, mais sofisticado é o chocolate, e por isso chocolates de altas porcentagens de cacau são distintos daqueles com menores, e consequentemente com mais açúcar, ou dos ao leite. O amargor, mesmo em barras com mais de 80% de cacau, pode ser controlado com uma torra leve e equilibrada. O chocolate amargo é um chocolate que foi torrado demais, ou fermentado de menos, ou seja, é um chocolate de qualidade questionável.

Após a torra, os grãos vão para uma outra máquina de café adaptada para cacau, que os descasca e quebra. Já em forma de nibs, seguem para uma pequena máquina, que os tritura, transformando-os numa pasta ainda bastante granulada. Esta pasta vai então para a estrela da produção, o moinho de pedra. O moinho serve para triturar ainda mais essa pasta, até que ela atinja uma textura cremosa. Esse processo dura 72 horas, ou seja, cada leva de chocolate fica por três dias ininterruptos sendo moída na pedra. Ao final desse processo acrescenta-se o açúcar.

Engana-se quem pensa que depois de tudo isso o chocolate está pronto para virar tablete. Após as 72 horas de funcionamento, Emerson e sua esposa Andreia retiram o chocolate do moinho manualmente e colocam em formas de 10kg cada. Nelas, os chocolates esfriam e endurecem, formando grandes barras. Estas barras ficam vinte dias curando e é nesse processo que surgem as fat blooms, ou as cristalizações da gordura do cacau que formam padrões muito interessantes visualmente — tão interessantes que, segundo Emerson, tem até competição de fat bloom entre as chocolaterias bean-to-bar no exterior. Durante a cura, o chocolate perde grande parte da adstringência, deixando somente alguma acidez. Essa leve adstringência que sobra, além de significar que ali tem flavonoides antioxidantes, é importante para ativar o paladar, pois é responsável por provocar uma leve salivação no momento em que o chocolate é consumido.

Depois de curar, os tabletões de 10kg voltam a ser derretidos para irem para as formas finais. É nesse processo que entram os sabores, quando é o caso: nibs de cacau, bergamota, curry, etc. As formas de tablete entram num tubo resfriador e saem já durinhas. Elas são então embaladas manualmente nas caixinhas feitas com design do designer e músico Daniel Gnattalli, que também fez o design das cervejas Hocus Pocus e vira e mexe toca com sua banda nas feiras da Junta Local. Daniel, aliás, muitas vezes usa a fábrica como escritório e é fácil, fácil encontrar com ele embalando as barras na produção junto com a Andreia. Pronto! Após uma longa jornada que começa com dias e dias de fermentação na Bahia e termina nas mãos da pequena equipe familiar de produção da fábrica no Rio, as barrinhas Quetzal estão finalmente prontas para ganharem os paladares e os corações de seus ávidos consumidores.

Encerramos a nossa visita com uma experiência divertida proposta pelo Thiago: uma degustação de chocolates industrializados, outros bean-to-bar provenientes de produções não-artesanais e os Quetzal. Que coisa engraçada: não é que, perto dos bean-to-bar, os chocolates comerciais parecem ter gosto de remédio? Aliás, a dica do Emerson para se degustar um bom chocolate de alto percentual de cacau é não mastigá-lo. O ideal é colocar um cubinho de chocolate na língua e deixar que ele derreta em contato com o céu da boca. Só assim você sente com propriedade todos os complexos sabores de um chocolate de verdade, inclusive o retrogosto, que surge após a sua ingestão.

Depois de todo esse dia de aprendizado, ficamos com um entendimento melhor sobre o que é crescer mantendo-se artesanal. Uma produção artesanal é uma produção cujas escolhas humanas estão sempre presentes e sobrepõem-se ao funcionamento das máquinas. As máquinas ajudam e aumentam a produtividade, mas em nenhum momento substituem ou automatizam um processo que deve ser feito por mãos, cabeça e coração. Ser um pequeno produtor é mais do que somente a escala de produção, que pode variar da cozinha de casa até uma fábrica. Significa lutar contra imposições de uma indústria voltada para o consumo e o lucro, ter prioridades que muitas vezes aumentam custos e dão mais trabalho e optar pelo caminho que for, mesmo que ele seja o mais longo e complexo, para produzir de acordo com o que se acredita e oferecer um produto de verdade. Não é fácil, mas juntos seguimos nadando contra a corrente e, no caminho, mais peixes aderem ao nosso cardume até que formamos nós mesmos nossa própria maré.

Crédito das fotos: Samuel Antonini