Texto do colaborador Guilherme Mattoso

Programas de incentivo, controle de qualidade e reconhecimento de denominação de origem, entre outras ações que valorizam uma determinada cultura ou produto agrícola, são medidas que consideramos fundamentais para a salvaguarda de espécies vegetais e animais, além da defesa de cozinhas típicas, de produtos saborosos e do prazer da alimentação. O problema é quando o apoio ganha ares de imposição.

É por isso que uma lei estadual aprovada em maio está dando o que falar no Rio de Janeiro. O projeto sancionado pela Assembleia Legislativa (Alerj) determina que bares, hotéis e restaurantes que comercializam bebidas destiladas, como cachaça, vodca ou uísque, por exemplo, sejam obrigados a oferecer, no mínimo, quatro rótulos diferentes produzidos nos alambiques do estado. Além da marca, a carta de bebidas também deverá informar o município de origem.

A Lei 7595 é de autoria do presidente da Alerj, Jorge Picciani, juntamente com os deputados Paulo Ramos, Sadionel, Luiz Martins, Luiz Paulo, Julianelli, Eliomar Coelho e André Ceciliano. O projeto valeu-se do argumento de que a medida incentivaria o consumo da cachaça fluminense, mas parece que os autores – principalmente o Eliomar Coelho, amante da branquinha e entusiasta da produção local – esqueceram de ouvir e conversar com produtores, comerciantes, sindicatos e associações. Resultado: a lei foi aprovada e estabelecida em 23 de maio e pegou todo o setor de surpresa.

A medida mal entrou em vigor e os estabelecimentos sequer tiveram um prazo de adaptação. O negócio que não cumprir as novas regras pode perder o direito a benefícios que dependam da autorização do Poder Executivo, como anistia de dívidas, empréstimos e renúncia fiscal. A “Lei da Cachaça” deixou desde produtores até donos de estabelecimentos indignados. O Sindicato de Bares e Restaurantes do Rio (SindRio) e a Associação Brasileira da Indústria de Hotéis (ABIH-RJ) já posicionaram-se contrários à nova regulamentação.

“Trata-se de uma lei inconstitucional porque ela fere o princípio de escolha do comerciante de vender o produto que ele quer. Na verdade, quem decide o que um comerciante vai vender é o público que ele atende. Não temos nada contra a cachaça produzida no estado, só achamos que existem diversas formas de se incentivar um produto e a obrigatoriedade aos comerciantes não é o caminho”, afirma Pedro de Lamare, presidente do SindRio.

Deise Novakoski, sommelière e bartender veterana na cena gastronômica carioca, assina embaixo. “Para nós, que trabalhamos no meio há muitos anos, a medida chega como mais um obstáculo nesse cenário terrível de crise, em um momento em que o estado não está com nenhuma credibilidade perante à população. Do produtor ao comerciante, ninguém vai se beneficiar dessa lei. Qualificação e capacitação de mão de obra, incentivos fiscais, promoção da produção local… isso, sim, seria muito bem-vindo”.

Produtores também foram surpreendidos e não entenderam muito bem a finalidade da medida. Haroldo Carneiro da Silva, do Engenho São Miguel, de Quissamã, afirma que a lei é interessante no sentido de estimular o consumo de cachaças locais, mas deveria ser melhor elaborada. “Se compararmos com o caso das cervejas artesanais, vários municípios, como Nova Friburgo, Macaé e Piraí criaram leis de incentivo sem que houvesse punição para quem não aderisse. Acredito que, com a cachaça, poderíamos seguir o mesmo caminho. Por exemplo, os estabelecimentos que incluírem cachaças locais em sua carta terão como contrapartida a possibilidade de incentivos fiscais. Minas e Bahia têm leis que seguem essa linha, com resultados muito positivos”.

Para ouvir uma voz experiente, perguntamos para um dos nossos, Eli Werneck, produtor da Cachaça Werneck, de Rio das Flores, e vice-presidente da Associação de Produtores e Amigos da Cachaça do Estado do Rio de Janeiro (APACERJ), propostas como esta não contribuem para a sustentabilidade do pequeno produtor. “Nós queremos conquistar espaço não pela imposição, mas por nossos próprios méritos. O Rio ocupa o segundo lugar nas exportações e, apesar de não estar nas primeiras posições em termos de volume, o estado cumpre o papel de centro de excelência, concentrando em seu território um número considerável de alambiques de altíssima qualidade. Vale destacar que essa lei não é uma espécie de lobby dos produtores que, em momento algum foram envolvidos na elaboração da lei. Trata-se de uma medida inócua, já que dificilmente haverá fiscalização e, sinceramente, não nos ajuda muito”.

Ainda de acordo com Eli, e nós da Junta Local compartilhamos da mesma visão, o desafio maior é educar e informar, tanto profissionais do setor quanto consumidores e fãs da branquinha sobre o verdadeiro valor das cachaças artesanais, feitas com qualidade, valorizando a cadeia produtiva local e respeitando o trabalho cuidadoso de pequenos engenhos e destilarias. A educação do gosto e a multiplicação de conhecimento exigem esforço e o que já vem sendo feito hoje, como um trabalho de formiguinha, de forma independente, traz resultados muito mais efetivos do que uma simples lei imposta pelo estado.

Um projeto de lei consistente e em linha com os anseios e necessidades de todas as partes envolvidas seria muito mais profícuo se beneficiasse produtores com incentivos fiscais, divulgação, sensibilização e informação. Simplesmente obrigar os estabelecimentos a ter rótulos locais não garante o apoio ao setor.

Crédito da foto: Foodshot