Introdução por Thiago Nasser | Texto por Gabriel Carvalho

Gabriel Carvalho foi ao longo do último ano nosso gerente de feira, a pessoa que cedinho recebe as barracas, confere seu posicionamento e a distribuição dos produtores; a pessoa que verifica se cabos elétricos, limpeza, gelo e outros elementos necessários da feira estão em ordem. Ao longo do dia, Gabriel ainda representava a Junta Local na nossa barraca “institucional”, em que orientamos o público e prestamos informações sobre o projeto como um todo. A feira acaba, mas o trabalho continua: fechar o caixa, coordenar a desmontagem, despachar o material da Junta. Gabriel fazia isso tudo sem jamais perder a calma, o que nem sempre é fácil numa feira feita com baixo orçamento e sujeita a todo tipo de imprevisto. Parecia flutuar em outra dimensão em meio ao zum-zum-zum muitas vezes frenético da feira.

Conhecemos Gabriel quando trabalhava n’A Bolha, editora querida, incansável na defesa do pequeno, que muitas vezes ocupava uma barraca em nossas feiras. De vizinho de barraca passou a ser membro da equipe. De feira entende também, pois é organizador da Feira Fantasma, de literatura e mídia impressa, oásis do pequeno e microprodutor. E, sim, de literatura entende. Seu texto “Jogo de Corpo” foi selecionado entre os dez melhores num concurso nacional de literatura juvenil.

Este mês Gabriel se despede da Junta Local, rumo a Berlim em busca de novas experiências. Antes de partir pedimos que Gabriel compartilhasse suas memórias da feira.

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Antes de sair, olho para trás. Vejo que todas as barracas, agora desmontadas, já lotam a carroceria do caminhão de sempre. Os sacos de lixo, empilhados num canto combinado com os garis da área, dizem que é hora de recolher os cones na esquina. Pode-se abrir a rua agora. Como sempre, sou a última pessoa a sair da feira.

Hoje talvez seja um debute, não lembro de já ter feito duas feiras no mesmo dia, mas pode ser engano. Essas contas se perdem facilmente, não são como as do caixa final, que já calculo no automático em algum lugar entre as lembranças embaralhadas do dia e a expectativa da outra feira, que começou às três. O segurança já foi pago e já saiu, os responsáveis pela limpeza, frete, gerador e DJ também.

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Tem um período, as últimas horas, quando a gente faz tanta coisa que não lembra de ter feito nada. A hora que eu converso com as minhas costas. Elas, como meu estômago, geralmente estão certas. Entre a primeira feira (de comida e na rua) e a segunda (de impressos, em um bar), passo por um restaurante fast-food, uma padaria, dois bares e duas lanchonetes. A última coisa que comi foi uma linguiça ao curry no meio da tarde. Talvez já seja hora de buscar outra coisa.

Há dois anos produzo esta para onde vou, uma feira de arte impressa. Livros, zines, pôsteres, quadrinhos e cadernos feitos em pequena escala, por artistas e editoras parceiras. Bem parecida com esta de onde saio, de cozinheiros, confeiteiros, baristas, cervejeiros e fazendeiros, onde trabalho como gerente. Ambas organizadas por pouca gente, gente que acredita no que está fazendo. Há um ano trabalho nessa aqui, a que hoje acabou pra mim. E mesmo antes já havia participado algumas vezes: enquanto todo mundo ali vendia comida, eu vendia livros, sempre na barraca ao lado da organização.

Ao fim das duas feiras, é minha a responsabilidade de receber a contribuição dos expositores. Sou responsável por acreditar na porcentagem das vendas que cada um deles admite ter vindo do nosso trabalho. Na minha, dividimos por três qualquer pequena grana que tenha entrado – essa, geralmente vira cerveja. Na que gerencio, tiro meu pagamento, fecho o caixa e vou pra casa deitar um pouco e cozinhar – a cerveja, já tomei ao longo do dia.

Trabalho três dias por mês nesta feira de comida, e isso paga minha parte no aluguel e as contas. Moro entre ladeiras e esses são, basicamente, os dias em que eu compro comida. Das pessoas que conheço. Uma tentativa de nutrição em que não seja difícil perceber o valor que se paga por cada partezinha do processo, onde se consiga enxergar as partezinhas da rotina que cruzam com a produção do que consumo e onde se confie no que estou comendo. É importante se ver como parte dessa produção.

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Por volta do meio dia, distribuo o dinheiro do almoço da equipe e tenho que cobrir o bar por um tempo. Na cadeira de praia usada na barraca que faz papel de bar atendo amigos, clientes assíduos e os produtores. É o segundo momento do dia com a mesma sensação. Aquela de que muitos acontecimentos se ajuntam num mesmo momento, quando não se sabe exatamente quanto tempo se passou ou o que foi feito naquele tempo. Estar no bar é, também, quando cada pessoa que aparece oferece aquilo que acabou de descobrir de gostoso. É quando pedaços da feira vão chegando e posso ver o que está acontecendo, a parte que interessa. O que estamos comendo hoje?

Linguiças, risotto, burrito, crepe, caldos, presunto, embutidos, pães, falafel, ceviche, vieira, ostra, marisco, cordeiro, queijos, hambúrguer, peixe, vaca, ovos, açaí, granola, iogurte, caldo de cana, caipirinha, vinhos, drinks, cervejas, cafés, palha italiana, doce de banana, crème brûlée, alfajor, tortas, bolos, chás quentes e frios, mate, sucos, sorvetes e água de coco. Falta tabaco. No bar tem água e cerveja sem milho.

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Às vezes alguém pede para baixar o volume da música. Às vezes alguém deixa um flyer de um novo produto fitness com uma barriga cor de rosa impressa entre as promessas de redução de medidas. Às vezes vem um marketeiro explicar exatamente o quanto a gente ganharia a mais se fizéssemos uma praça de alimentação na Barra da Tijuca. Às vezes a conta não fecha, o gelo demora e a barraca atrasa, eu atraso, o DJ, os produtores e os clientes atrasam. Às vezes chove e às vezes a gente se distrai. Às vezes o volume está alto mesmo e a gente tem que baixar pra continuar conversando.

Hoje ouvi que chegar na feira é estar em algum tempo suspenso. Existe fila, uma velocidade coletiva de andar, esperar sua hora de falar, encontrar conversas indisperdiçáveis. Estar nesse tempo é o que procuro viver aqui, um trabalho onde seja possível realizar uma coisa em um dia. Cada coisa pequena parte de algo maior. Uma feira deve significar, de fato, acreditar no pequeno. Propor e administrar a organização de pequenos movimentos é uma declaração de crença, não só na possibilidade de criar um impacto maior (que nenhum de nós consegue atingir sozinho), mas também de que todos que tiveram contato com esse movimento serão tocados individualmente e que você não poderia querer ninguém diferente passando essas mensagens além daqueles com a dispendiosa dedicação de fazer parte disso. Cada pequena coisa dita, falando mais alto.

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À noite chego carregado (como sempre), mas não em casa. Na calçada já encontro amigos e gasto uma boa meia hora para cruzar o corredor externo até onde possa largar as duas dúzias de ovos (foram presente, eram pequenos para a venda), o queijo, o quilo de mandioca e a garrafa de cachaça comprados de amigos. As costas, dessa vez, agradecem. O estômago começa a se interessar por um sanduíche de peixe. Daí já não parece que eu fiz duas feiras. O percurso ladeado por fritura, açúcar e cerveja de milho entre uma e outra já parece mais uma saída pra fumar no meio do dia.

Na segunda feira, em uma parede do salão, um amigo pendurou uma pintura que havia feito de mim há uns anos. Uma presença fantasma enquanto eu não chegava encarnado. Abraço amigas e amigos: da faculdade de Direito, artistas e editores expondo, da primeira feira, que trabalham ali naquele bar e outros velhos e novos. Penso na energia gasta durante o dia. Lembro que acordei cedão e troquei o café da manhã em casa por mais quinze minutos de cama. Quero escutar sobre o dia, novidades e projetos. Faço um brinde discreto. Tiro uma foto importante. Vendo uns livros. Recebo e divido grana. Volto pra casa de cabeça zonza e pés doloridos. Acho que faço outra no fim de semana que vem. Gosto das coisas que não acabam em mim.

>> Este texto faz parte da edição #7 de 2017 da Revista da Junta Local <<
Crédito das fotos: Samuel Antonini