Editorial por Thiago Nasser

Quando o assunto é comida, o “momento proustiano” é sempre uma questão de tempo. A força da madeleine de Proust, consagrando a memória como um sexto gosto do paladar, vem de sua universalidade. Qualquer um, mesmo sem nunca ter folheado “Em Busca do Tempo Perdido”, já teve o seu momento: aquela súbita enxurrada de reminiscências e sensações que nos pega desprevenidos após ser destampada por uma simples mordida, por um cheiro.

A comida responsável costuma ser algo trivial mas cujo gosto e aroma estão impregnados no nossos córtex desde a mais tenra infância. A madeleine de Proust, a canja de galinha da avó, o cheiro de feijão assim que a panela de pressão começa a apitar… são as comidas do afeto, às quais recorremos nos momentos difíceis e de celebração dos laços, como agora nesse momento de festas que iniciamos. No caso deste que vos escreve, o cheiro dos biscoitos de gengibre nunca falham… As especiarias que colocavam os biscoitos num patamar acima das bolachas “comuns”, o rito de fazê-los junto com a minha mãe (ou pelo menos assisti-la), a vasilha tupperware com a tampa da borda quebrada em que eles eram guardados depois no Natal, a minha preferência pelo “ponto” em que de crocantes eles começam a ficar mais macios (obra da tampa quebrada), a possibilidade de dar para minha paixão da segunda série aqueles em formato de coração…

Ao longo da vida, somos apresentados a novas comidas, novos aromas, mas geralmente eles apenas se tornam memoráveis se associados a momentos, companhias e reflexões. Essa é a sopa primordial da gastronomia: a comida é incrível apenas se podemos falar dela depois, se ela vira memória. Como escreveu a excelente Nina Horta: “Parece até que ninguém está mais interessado em comer, só em lembrar.” Sim, Nina, talvez seja porque boa parte do comer seja lembrar.

Na Junta Local encaramos nosso trabalho de contar histórias e fomentar um sistema alimentar alternativo como partes de um mesmo todo. Cada feira, cada Sacola Virtual é uma fábrica de novas sensações. Muitas passarão, algumas virarão memória e parte da nossa história individual e coletiva.

Nesta edição da Revista quisemos então explorar a forma como a memória é criada. Falamos do gosto e do aroma, mas certamente a imagem é protagonista clássica da memória e por isso convocamos nosso fotógrafo Samuel Antonini para falar do papel da fotografia nesse processo. Partindo de sua experiência muito individual com a descoberta de um álbum de família, Samuel fala de sua experiência como o principal ator no registro visual da nossa história. Existe um enorme amadurecimento que separa o momento em que o chamamos de forma casual para fotografar um evento para o atual trabalho de verdadeiramente refletir sobre como a fotografia faz parte do esforço coletivo de valorização de narrativas individuais e coletivas.

Nosso passeio continua com o relato de Gabriel Carvalho, integrante da equipe da Junta Local responsável pela gerência das nossas feiras que recentemente se despediu para viver em Berlim. Antes de partir, nos deixa uma joia de texto sobre as memórias de uma feira, em que suas circunstâncias pessoais de produtor de outra feira independente são atiradas no corredor polonês de calor humano que é nossa feira na Rua Capistrano de Abreu.

Fechamos a Revista onde a começamos – falando e cozinhando lembranças na coluna “Zé Come”. Todo conto de Natal tem seu Ebenezer Scrooge, e José Pedro Fonseca é certamente o nosso, mas com suas receitas de babka e gingerbread cookies podemos nos lançar nos braços reconfortantes da memória natalina e nos esquecer das durezas do resto deste difícil ano.

Boa leitura e boas festas.

>> Este texto faz parte da edição #7 de 2017 da Revista da Junta Local <<
Crédito das fotos: Samuel Antonini