Nascida em nosso blog, a coluna “Ajuntados da Junta”, em que apresentamos nossos colaboradores no formato de entrevistas ou perfis, chega à Revista. Na edição sobre o global e o local, a escolha óbvia foi Luciara Franco, coordenadora do Chega Junto. Mineira de origem e comunicóloga por formação, foram em andanças pelo exterior que foi se forjando na “ativista gastronômica”.

Em 2013, como representante do projeto Food Revolution da Fundação Jamie Oliver, organizou uma feira reunindo produtores locais e campesinos na região do Chiapas, no México. Desembarcou no Rio logo depois e viu que poderia dar continuidade a seu ativismo na Junta Local. No começo da parceria, Luciara podia ser vista na Casa da Glória organizando oficinas para crianças. Depois veio a ideia de abrir espaço para refugiados em barracas da feira, aliando o acolhimento aos recém-chegados e a possibilidade de conhecer comidas autênticas de outros cantos do mundo. O projeto ganhou vida própria e hoje começa a caminhar com sua próprias pernas e abrir novos espaços para seus integrantes. Em parceria com a Junta Local, participa da nossa feira mensal na Christ Church Rio, em Botafogo, com o objetivo de fazer com que integrantes do Chega Junto passem a integrar a nossa comunidade.

O mundo passa por uma crise sem precedentes de refugiados e o Brasil tem recebido uma significativa parcela de pessoas que saíram de condições de muita vulnerabilidade. Depois de mais de um ano de Chega Junto, como tem sido a percepção desse problema das pessoas que frequentam a feira? Por outro lado, como tem sido a experiência de integração dos membros do projeto?
Esse contexto de crise global é refletido aqui, sem dúvida, e eu diria que a temática do refúgio tem despertado, cada dia mais, a atenção do público frequentador das feiras e da sociedade brasileira de maneira geral. A principal motivação do Chega Junto foi criar um projeto pioneiro no Rio de Janeiro onde refugiados pudessem estabelecer um vínculo social real e gerar renda a partir da sua inserção no universo da gastronomia, em especial, das feiras gastronômicas. A feira Junta Local foi o lugar exato para isso acontecer pela afinidade da sua missão e público com o projeto.

Quem frequenta a Junta Local não busca apenas uma feira e sua seleção de bons produtos. Vão lá para passar um dia gostoso e agradável, para relaxar, curtir a boa companhia, a boa música e, claro, a boa mesa. Da mesma forma, hoje quem frequenta a feira Chega Junto vai lá com a intenção de estabelecer essa conexão, uma troca cultural legítima, para conhecer os participantes, para experimentar seus quitutes “exóticos”, mas também para saber mais sobre eles, e estabelecer, aos poucos, esses vínculos com os refugiados e membros do projeto. E isso é muito rico, pois é quando o processo de integração é efetivamente lançado e eles se sentem emocionalmente recompensados por essa troca sincera com o público, a cada feira.

Depois de dois anos não temos dúvida de que cada passo dado foi no caminho certo, pois o projeto cresceu, organicamente e com a colaboração de muitas pessoas, e hoje é uma referência, além de um importante ponto de contato dessas famílias com outros projetos e entidades afins.

O Chega Junto começou com algumas barracas na feira da Junta Local, passou a ter uma feira mensal em parceria com a Junta Local e também realiza feiras de forma independente. O que poucas pessoas sabem é que o projeto também busca outras formas de integração. Conte um pouco mais sobre essa evolução e as outras frentes de trabalho do Chega Junto.
Temos a constante preocupação de criar outras frentes e espaços, como braços do projeto, paralelos a uma capacitação ou treinamento focados nessas atuações distintas.

Cito, por exemplo, a inserção dos participantes em plataformas digitais para venda de seus produtos e serviços. Esse trabalho começou também na Junta, que integrou à plataforma a Maria El Warrak, refugiada da Venezuela-Líbano. Como ajuntada desde 2016, a Maria entrou recentemente para a Sacola Virtual, o que já vem dando um resultado muito satisfatório para o seu negócio, o El Warrak Comida Árabe Artesanal.

Nesse sentido, também consolidamos como parceiro o projeto Incare, ligado ao grupo Enactus, do Cefet-RJ. Os estudantes voluntários estão montando essa metodologia para que os refugiados e migrantes estejam aptos, num curto espaço de tempo, a operarem as ferramentas digitais com maior segurança e com um potencial de vendas de maior alcance.

Outra parceria firmada foi com o restaurante CO.zinha, no Humaitá, onde os cozinheiros estão, pouco a pouco, inserindo-se nesse distinto ramo da gastronomia. Isso, contando com o apoio dos professores do curso de gastronomia da UFRJ, que estão oferecendo a eles, gratuitamente, um curso de aperfeiçoamento voltado para o mercado gastronômico, enfatizando noções de logística, higiene e segurança, pré e pós-produção etc.

O Chega Junto tem a comida como principal ferramenta de integração e tem como premissa a ideia de que podemos através do projeto conhecer uma cozinha mais “autêntica”. Quais são os principais desafios nesse sentido, visto que nem sempre todos ingredientes são acessíveis (seja por disponibilidade e custo)? De que forma acabam acontecendo “adaptações” de receitas, por exemplo?
O que garante a autenticidade da feira é que ela é feita por pessoas que vieram desses países e aprenderam ali as receitas originais, tendo como inspiração a casa, a rua, a casa da avó… No Brasil, obviamente eles adaptam um ou outro ingrediente, mas geralmente fazem na feira exatamente o que fazem em casa. Ou seja, buscam uma combinação de sabores que é própria da sua cultura, o que é bem interessante. Por exemplo, o mexicano tem uma queda por tudo o que é ácido e picante, do picolé às carnes mais elaboradas, como a Chochinita Pibil, tudo leva esse duplo sabor característico. Aí, ao chegar aqui, eles buscam essa recriação, utilizando outras pimentas e temperos, mas definindo o autêntico sabor mexicano por aquilo que, para eles, é o “sabor ideal”.

Também uma distinção da feira é que ela é frequentada por muitos estrangeiros também, tanto os familiares e amigos dos produtores quanto turistas e curiosos. E, assim, a identidade autêntica vai naturalmente se firmando, pois seria, digamos, um público mais exigente que não levaria gato por lebre – não vale arepa “tipo colombiana”! No Chega Junto, a arepa é a colombiana clássica, do modo de preparar ao modo de servir e degustar.

O Chega Junto é muito mais que uma feira. Percebemos um enorme apoio e acompanhamento da sua parte e da parte da sua equipe aos produtores. Fale um pouco mais sobre isso.
Eu diria que a integração sociocultural dos refugiados é um dos três pilares centrais do projeto, ao lado da geração de renda e da troca cultural.

Mesmo com formações profissionais ou acadêmicas relevantes em seus países de origem, ao chegarem no Brasil, os refugiados encontram grande dificuldade em estabelecer-se aqui, seja por barreiras linguísticas, sociais, econômicas ou mesmo por não terem ainda os meios para atuarem de forma profissional e com o conjunto de ferramentas e condições necessárias para conseguirem uma estrutura de trabalho válida. A feira, além de ser um lugar onde é possível comercializar seus alimentos de forma simples e num processo logístico muito facilitado, é o espaço de contato onde eles estão conseguindo criar um novo caminho de geração de renda autônoma e empreendedora. E assim, a partir da feira, vão sendo criados outros braços do projeto, como a capacitação para atuarem profissionalmente como cozinheiros em restaurantes ou venderem seus serviços e produtos diretamente ao público, via internet.

As relações pessoais naturalmente se fazem, em paralelo ao trabalho. Assim, formamos hoje uma espécie de “grande família”, com distintos sotaques e trajetórias. De fato, os nossos “chegados” percebem nesse espaço de encontro um lugar de acolhimento, e com novos amigos que chegam, a cada dia. O espírito é de solidariedade e cooperação, sempre. Estamos sempre pedindo ajuda, uns aos outros, como vizinhos que pedem um copo de açúcar, e as demandas vão aparecendo diariamente: “Alguém tem um fogareiro para emprestar?”, “Sabe onde consigo um tradutor juramentado de espanhol?”, “Onde posso encontrar uma casa para alugar?” e por aí vai… Se alguém entra para o Chega Junto com uma visão puramente comercial, sem o espírito colaborativo e a disposição para ajudar – e ser ajudado – se decepciona, não cabe.

Como você vê o Chega Junto no futuro?
Temos algumas metas, como ampliar o número de participantes e termos outro espaço permanente para as feiras do Chega Junto, além dos jardins da Christ Church Rio, em Botafogo. O local mais cotado é o Parque das Ruínas, em Santa Teresa, onde fizemos uma edição especial, em junho, na celebração do Dia Mundial do Refugiado. O pessoal de lá, nós também do projeto e o público gostamos muito e rolou o convite para voltarmos e definirmos um calendário de feiras a cada três meses, em 2018.

Também queremos evoluir na inserção gradual do grupo em plataformas digitais, como a Sacola Virtual (para os que já ingressaram como produtores da Junta Local) e o Comida da Gente, como o apoio dos estudantes da Enactus.

Além disso, o projeto caminha para ter mais autonomia e sustentabilidade, com a possibilidade de novos empreendimentos coletivos, como os serviços de “buffet étnico” para eventos e jantares, por exemplo. Em todas as frentes, capacitações e cursos dirigidos ao mercado de trabalho são essenciais para uma devida e constante profissionalização do grupo. A proposta inicial do projeto segue, de criar um ambiente favorável à formação de novos vínculos solidários entre tais produtores e o público que chega até as feiras. E, a partir do Chega Junto, realizarmos essa troca sociocultural com a criação de novas e constantes redes de cooperação, decisivas para o seu processo de inclusão.

>> Este texto faz parte da edição #6 de 2017 da Revista da Junta Local <<
Crédito das fotos: Samuel Antonini