Editorial por Thiago Nasser

O tema desta edição Revista da Junta Local é o global. Mas alto lá! Não somos a Junta Local?

Permitam-nos uma breve digressão para explicar. Antes mesmo de organizar a primeira feira ou entrega da Sacola Virtual, havia esse nome que de certa maneira condensava todos os significados que nosso projeto deveria conter. Chegamos ao nome via o infalível e rigorosíssimo método utilizado por meninos e meninas espinhentas ao buscar o nome de sua banda de rock: lançando-se num jogo de livre associação de palavras até que uma combinação faça o clique. “A Junta” ou “Junta”, salvo trapaças da memória, foi um nome que eu joguei na parede. Além da denotação óbvia de querer agregar, reunir em torno da comida, a ideia de uma Junta (ainda mais quando pronunciado em espanhol) tem um quê de subversivo. Quando Henrique jogou “Local” na parede, as peças se encaixaram automaticamente e fomos salvos de hoje termos “A Congregação Geral” ou a feira “Food Fighters” (não disse que era como uma banda de rock?).

Mas o que importa desta anedota é atentar ao significado que tínhamos em mente ao utilizar o Local. O nosso local não deveria se confundir com qualquer oposição radical ao global ou a defesa radical de consumo de produtos dentro de um raio geográfico restrito, como os movimentos “locavoristas” defendem. Tínhamos muito mais em mente o nosso escopo de ação (a cidade) e a proximidade e encurtamento de distância pretendidos dentro de uma cadeia alimentar alternativa, o que poderia ou não significar produtores com CEP no Rio de Janeiro. Nossa feira se inspira em igual partes no Ver-o-Peso de Belém e Smorgasbord em Nova Iorque. Somos, afinal, de uma geração que viveu o otimismo globalista dos anos 1990 e seu rescaldo millenial. De certa maneira, o local é apenas mais uma forma de expressão dentro de um mundo globalizado, nos inspiramos em muitos outros “locais” e o local que construímos aqui se apropria um pouco de tudo. Não queremos um mundo global homogeneizado, queremos um mundo interconectado, mas que respeite e valorize toda a biodiversidade. E não é porque estamos fazendo qualquer diagnóstico da pós-pós-pós-modernidade, é apenas porque com a comida sempre foi assim. Não há qualquer cozinha local ou tradicional que não tenha se apropriado de frutos da globalização; não há movimento pela valorização da comida local que não se comunique com outros movimentos da mesma natureza.

Portanto, para esta edição da Revista, buscamos na Junta os pontos de interseção mais intensa entre o global e o local.

Desse ponto de vista, o Chega Junto era a pauta mais óbvia. E ninguém mais apropriado para falar do assunto que Luciara Franco, coordenadora do projeto, que entrevistamos dando sequência à nossa série Ajuntados da Junta. Se Luciara proporciona uma contextualização geral do projeto dentro de um mundo em convulsão que resulta no deslocamento em massa de populações (e suas comidas) em situação vulnerável, nossa produtora e colaboradora Élide Vecchi, do K. Probióticos, nos oferece um relato pessoal e etnográfico do ponto de vista de um local ao se encontrar com essa “tribo” de refugiados na feira, com diversos desdobramentos. (O próprio kombuchá que Élide produz é um belo exemplo de apropriação local de uma cultura alimentar global e alimentar.)

Da feira vamos para a cozinha, mais especificamente a cozinha da Comuna, que finalmente estreia sua coluna de receitas – a “Cozinha Comuna Cozinha” – aqui na Revista sob a batuta do nosso Bruno Negrão e Tatiana Fernandes. As receitas apresentadas são produto de uma viagem do casal à Espanha e vão para o prato com ingredientes de produtores locais. A viagem hi-lo, daqui-e-dacolá da Comuna é presença confirmada a cada dois meses.

A Revista se completa com dois textos acerca de um assunto muito atual: a luta pelo reconhecimento legal de produtos artesanais brasileiros como queijos e embutidos, uma bandeira empunhada pela Junta Local e muitos outros dentro do movimento da comida. Movimento este que é, por sinal, global. A Europa foi pioneira nas criações de “denominações de origem” e hoje este movimento abrange toda sorte de iniciativa de valorização de comidas e saberes locais ou tradicionais. Mas aqui em terras tupiniquins, apenas recentemente atingiu este movimento um nível de visibilidade, digamos, “global”. O estopim foi a apreensão de produtos da renomada chef Roberta Sudbrack no Rock in Rio deste ano. E Roberta não é apenas uma chef, é uma cozinheira que sabe que a cozinha começa no campo – seu mis en place começa lá como gosta de dizer. Ela é uma voz consciente do seu alcance em tempos em que a gastronomia ganhou proeminência cultural. E se ela tem voz, esta deve ser transgressora, pois o “universo” da comida, do ponto de vista legal, precisa do seu momento e pur se muove – são os pequenos produtores que movem a gastronomia. Por isso, convidamos Roberta para contribuir para nossa Revista, e ela generosamente aceitou.

A nossa voz se une à de Roberta, mas sabemos que o debate a respeito da regularização requer diálogo com especialistas e órgãos públicos. Pensando nisso, convidamos a nossa “universitária” no assunto, Márcia Brandão, para dar uma verdadeira aula sobre a lógica que justifica a legislação e fiscalização destes produtos. Seu texto não é um simples contraponto ao da Roberta, é um complemento que sugere quais particularidades da produção artesanal no Brasil precisam ser contempladas em qualquer revisão de legislação.

E essa revisão já está em marcha em diversas frentes e debates. Convidamos você, leitor, a se informar e mobilizar. Um ponto de partida é o abaixo-assinado que será enviado ao Presidente da República organizado pela Associação do Produtores de Queijo Canastra (APROCAN). A Junta Local subscreve integralmente ao seu teor.

Concluímos este Megafone um pouquinho mais convictos de que, nas palavras de Élide Vecchi, precisamos reforçar uma “lógica do global [em que] fortalece-se, primeiro, o local, e em um universo de muros, promovem-se pontes”.

>> Este texto faz parte da edição #6 de 2017 da Revista da Junta Local <<
Crédito das fotos: Samuel Antonini