Introdução por Thiago Nasser | Texto por Márcia Brandão

Márcia Brandão Palma é Mestre em Ciência e Tecnologia de Alimentos pela Universidade Federal de Viçosa e Doutora em Engenharia Química pela Universidade Federal de Santa Catarina. Atualmente é professora nos cursos de Pós-Graduação e Extensão da Nutrinew Escola de Gastronomia, onde leciona sobre conservação de alimentos e processamento de óleos e vinagres. Como esse currículo, não titubeamos. Quando a Junta Local precisa de “ajuda de universitário”, é a ela que recorremos.

Convidamos Márcia a escrever para a Revista e não apenas explicar a lógica por trás da fiscalização e legislação que garante a segurança alimentar, mas sobretudo mostrar que ela não é irreconciliável com a forma de produção do produtor pequeno e artesanal.

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Todo alimento traz, na sua singularidade, a complexidade dos seus componentes que o torna único. Quando misturamos um alimento ao outro e os processamos, está feita a transformação: somos manipuladores de alimentos, participantes da cadeia alimentar produtiva. Se pensarmos na característica particular de cada alimento e na diversidade de produtos e processos, conseguiremos alcançar uma parte da riqueza da complexidade que cerca a manipulação dos alimentos, sem fazer distinção entre produção artesanal ou industrial.

A cadeia alimentar produtiva é uma engrenagem formada por vários elos, que têm que funcionar com a mesma eficiência, para garantir qualidade e segurança do alimento, desde a produção até o consumidor. Compõem a cadeia alimentar, com igualdade de importância: manipulação, armazenamento, transporte e comercialização. Trazendo para a nossa realidade cotidiana, se colocarmos lado a lado um pequeno produtor artesanal que vende o seu produto na feira local e um produtor de uma indústria alimentícia que alcança todo o território nacional, ambos manipulam, armazenam, transportam e comercializam seus produtos. As muitas diferenças entre estas duas realidades não exclui nem um nem outro de estarem cientes que o alimento que processam possui um nível de perecibilidade sendo passível de alterações que podem afetar a saúde de quem o consome e que todas as etapas da cadeia produtiva, sendo simples ou complexas, têm que ser cercadas de cuidados para que ambos ofereçam um produto de qualidade.

Os países que possuem qualquer tipo de manipulação de alimento para comercialização, seja em nível artesanal ou industrial, possuem também diretrizes elaboradas pelas autoridades sanitárias locais chamando à responsabilidade aqueles que se propõem a processar um alimento e oferecê-lo ao consumidor com qualidade e segurança. É fato que um grande problema que temos que enfrentar, e buscar soluções que atendam as novas demandas da sociedade no que diz respeito ao seu padrão de alimentação, é que a legislação no Brasil (e não só a sanitária) se perde em lentidão e excesso de burocracia, o que engessa as ações tanto de quem produz como de quem regula e fiscaliza. Muitas vezes as orientações da lei não são bem interpretadas ou têm interpretações diferentes por cada agente fiscalizador. A consequência é que, em muitos casos, ocorrem mais ações punitivas do que formadoras e fiscalizadoras e, obviamente, as grandes indústrias têm mais fôlego de enfrentamento do que o pequeno produtor.

Só há uma estratégia que o produtor artesanal, sufocado por esse excesso da burocracia, precisa seguir: cercar-se de conhecimento. A legislação sanitária, pela complexidade de produtos e processos, tem sua razão de ser, mas não há justificativa para o uso da lei como ferramenta para emperrar o ciclo produtivo daqueles que têm consciência da sua responsabilidade como participante da cadeia alimentar e querem ampliar sua fronteira de ação. No entanto, o fato de um alimento ser de origem artesanal, ser produzido em pequena escala, ter tradição cultural não isenta o produtor de se preocupar com a segurança que este tem que trazer ao seu consumidor e, para isso, algumas vezes, mudanças de paradigmas terão que acontecer. Por mais simples que sejam os processos, por mais artesanais que sejam os equipamentos, por mais conhecidos que sejam os fornecedores, isso não impede que o pequeno produtor venha para o jogo e ofereça um produto diferenciado, mas seguro. Particularmente, se o produtor quer ampliar a vida de prateleira do seu produto e as fronteiras de comercialização, a busca pelo conhecimento é uma realidade da qual não se pode fugir. A garantia da qualidade, se atribuída somente às tradições alimentares, ao prestígio do produtor, ao sabor do alimento, ao simples rótulo de “produto artesanal” não irá levar às mudanças necessárias na legislação. A atualização da lei sanitária vigente só acontecerá a partir de dados concretos, argumentos técnicos consistentes e pluralidade de conhecimentos sendo debatido entre todas as partes com responsabilidade e idoneidade.

A palavra-chave que orienta a legislação sanitária para manipulação de alimentos atualmente no mundo é rastreabilidade. Industrial ou artesanal, todo produtor de alimento tem que estar inserido neste conceito. O primeiro passo é conhecer a matéria-prima que vai ser processada. Cada alimento possui suas características naturais de pH, umidade e teor de nutrientes – que chamamos de fatores intrínsecos – e cada local de manipulação possui suas condições ambientais de temperatura e umidade – o que denominamos fatores extrínsecos. Alguns destes fatores podem ser modificados ou controlados, outros não, e isso leva à escolha do processo de transformação e do método de conservação a ser aplicado. Além do alimento em si, tudo que gira em torno da sua transformação tem que ser conhecido, normatizado e registrado: ingredientes, insumos, manipuladores, processos, equipamentos, fornecedores, transportadores, pontos de venda, tudo faz parte da engrenagem da cadeia alimentar. Ter conhecimento sobre estas etapas permite que qualquer produtor (mais uma vez sem distinção de ordem de grandeza) siga seu fluxo de produção minimizando o risco de contaminação ou de alteração sensorial e físico-química do seu produto. E, o mais importante: havendo alguma ocorrência, ele poderá rastrear toda a cadeia produtiva, identificar e corrigir o problema, e seguir sua produção em segurança, mantendo tradição, cultura e qualidade. Mais uma vez é importante enfatizar a complexidade em função da diversidade de produtos e processos, o que não pode ser negligenciado por quem regula, inspeciona e fiscaliza, nem por quem produz.

A extensão de abrangência da legislação sanitária tem que ser compatível com toda a cadeia alimentar. Por esta razão, a distância percorrida pelo alimento, bem como as suas condições de transporte, desde o ponto de produção até o ponto de comercialização fazem parte do escopo das orientações higiênico-sanitárias que os produtores de alimentos têm que seguir. Essa é a lógica da diferença entre os Selos de Inspeção Municipal (SIM), estadual (SIE) e federal (SIF), exigido aos produtos de origem animal, dependendo do seu deslocamento desde o ponto de produção.

Um exemplo importante sobre a real possibilidade de atualização da legislação foi a criação, pelo MAPA – Ministério de Agricultura , Pecuária e Abastecimento – do SISBI-POA – Sistema Brasileiro de Inspeção de Produtos de Origem Animal* –, normatizado em 2011, que, em linhas gerais, permite que unidades de produção que já foram submetidas à inspeção sanitária municipal ou estadual possam receber, através de comprovação de equivalência de processos e estruturas na parte higiênico-sanitária, a liberação para o comércio interestadual. Um avanço significativo, levando em consideração a grandeza da nossa produção e a extensão de fronteiras entre os estados no Brasil.

Comparar a nossa legislação sanitária com a de outros países, especialmente os europeus, tem que ser feito com muito cuidado para que os argumentos não se percam nas diferenças de dimensão, condições climáticas e meios de transporte. Nosso país possui distâncias entre os estados que ultrapassa toda a extensão territorial dos países europeus. O clima no Brasil é tropical exigindo que o transporte de alimentos perecíveis seja adequado à esta realidade. E ainda: o nosso transporte de cargas é lento, preferencialmente rodoviário, em vias com alto grau de precariedade. Este elo da cadeia alimentar tem, portanto, um peso muito grande no Brasil, que não permite comparações tão diretas com outros países.

Outro aspecto da legislação sanitária que precisa ser abordado é o seu caráter eminentemente preventivo. Este é um viés pouco compreendido nas interpretações das exigências sanitárias. O caráter preventivo é que dá o tom da legislação que, num primeiro momento, pode parecer exagerado. No entanto, se analisarmos outros setores da sociedade, todo trabalho de prevenção é feito pensando que o pior poderá acontecer: na construção civil se pensa no maior sobrepeso de carga; na área médica se pensa na pior infecção hospitalar e na área de alimentos toda a legislação é pensada para prevenir a pior contaminação microbiana ou a pior degradação química do alimento que possa colocar em risco a saúde do consumidor. Mesmo que um surto de intoxicação alimentar nunca tenha acontecido pelo consumo de um determinado alimento, todo o trabalho da legislação sanitária é feito pensando na possibilidade disto acontecer. Pode parecer fora de contexto, mas se há chance, a prevenção tem que ser feita. Alimentos são ricos em nutrientes para nós e da mesma forma para bactérias, fungos e leveduras, que fazem parte do nosso ambiente. E mais um agravante: a velocidade de reprodução de um microrganismo, bactérias principalmente, é muito rápida e o que seria uma pequena contaminação pode ser tornar um grande problema em poucas horas. Assim, o que parece ser o exagerado caráter preventivo não pode ser minimizado.

É inegável que toda a motivação para criação das leis de regulamentação sanitária brasileira veio pela expansão da atividade industrial nas décadas de 40 e 50. No entanto, de lá até a atualidade muitas modificações foram feitas, pautadas pelas novas realidades que foram se apresentando. Nada impede, portanto, que outras adequações, demandadas pela sociedade, possam acontecer, não se esquecendo que a legislação sanitária sempre levará em conta a complexidade da cadeia alimentar e o caráter preventivo. A argumentação responsável e coerente, na defesa de alimentos seguros e de qualidade, em todas as dimensões da produção, pode abrir uma nova matriz na legislação sanitária para abrigar os produtores artesanais, facilitando, principalmente, o desenrolar das questões burocráticas. Da mesma forma, um maior comprometimento das autoridades sanitárias em orientação sobre a responsabilidade que é manipular um alimento pode mudar o cenário atual, que se desenha como “nós contra eles”, o que não beneficia nenhuma das partes.

Temos um objetivo comum, por isso com entendimento e respeito mútuo é possível que a legislação, sem ser negligente, abrigue a todos sem tirar a atenção do que mais importa: segurança na riqueza da manipulação do alimento.

* Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento – Instrução Normativa do MAPA No  36/2011

>> Este texto faz parte da edição #6 de 2017 da Revista da Junta Local <<
Crédito da foto: Samuel Antonini