Editorial por Thiago Nasser

Esta edição da Revista da Junta Local começa como um humilde pedido de desculpas ao nosso leitor pelo atraso na sua publicação e divulgação. Como todo produtor artesanal, o fruto do nosso trabalho se confunde com nossas vidas. A filha que nasceu, os trabalhos que se somaram, as mudanças de endereço fizeram com que esse outubro quase entrasse em novembro. Mas como todo pequeno produtor, continuaremos nos mexendo aqui para que o toque humano no nosso produto final apareça apenas na forma de cuidado artesanal com conteúdo e forma.

A vedete deste mês na Revista é um produto que está presente de forma marcante tanto no nosso dia-a-dia como na nossa história: o café. Se você é como 99% dos brasileiros e boa parte da população mundial, a essa altura do dia você provavelmente já bebeu pelo menos um copinho. Mas qual foi o café que você bebeu? Foi aquele de pacotinho de alguma grande marca, que você coou e tomou bem forte com açúcar? Foi uma cápsula de marca famosa endossada por um ator ou chef famoso que você atochou numa máquina com design futurista? Ou foi um café moído, cujos grãos são todos oriundos de uma única pequena fazenda, de torra clara e acidez mais elevada? Quem sabe você usou uma Hario? A diferença entre um e outro para a Junta Local não é de mero preciosismo gourmetizador, arriscando colocar o apreciador de café no panteão de chatos-mor como o enochato e o beer geek.

Optar entre um bom café e um café de quinta categoria significa não apenas exercer as papilas gustativas, mas se colocar ao lado de um movimento que promete renovar a relação do brasileiro com esse produto que teve enorme influência na nossa história e economia. Podemos optar entre continuar tratando o café como uma commodity, em que o café que entra num pacotinho pode vir de qualquer lugar, plantado como uma monocultura e ser processado de qualquer maneira, ou podemos nos colocar ao lado de um grupo de lavradores, torrefadores, baristas, donos de cafés e especialistas que prometem resgatar o café de sua condição histórica no Brasil.

O café pode ser um produto tão sofisticado ou mais que o vinho, pode oferecer uma fonte de sustento digna para uma série de atores dentro de uma cadeia muito mais autônoma de produção. Esse movimento se chama a Terceira Onda do Café e já está em marcha há pelo menos uma década no exterior e começa a arrebatar o Brasil.

Nesta edição, surfamos essa onda com um enfoque especial no Rio de Janeiro, estado que já foi o principal exportador mundial do produto e que apenas agora começa a exibir uma cultura de apreciação de café que pode servir de ponta de lança na redescoberta do café como lavoura especial. Assim como o Rio deixou de ser a terra do chope sem colarinho e hoje é reduto de revolucionários cervejeiros artesanais, está na hora de deixarmos para trás os tempos do café amargo e forte (não por opção, mas por desleixo) e o espresso mal tirado para explorar as possibilidades desse produto, com o bônus da proximidade de centros produtores como São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo e a esperança de voltarmos a produzi-lo e torrá-lo com alta qualidade aqui. Esse é o argumento colocado por este que vos escreve no texto sobre a terceira onda do café, em que tentamos fazer uma conexão entre a história do café na cidade e a atual cena de “surfistas” da terceira onda café.

Passamos do argumento à prática no texto seguinte desta edição, em que relatamos uma conversa e prova de café com produtores da Junta Local. Numa segunda-feira, juntamos produtores da Junta que trabalham com café e outros produtores para uma discussão sobre o produto e uma cafeinada degustação guiada por Leonardo Gonçalves. Nossa comunidade, afinal, precisa acordar também para a riqueza do café especial e entender que os métodos de preparação são aliados para realçar terroir e torra. Juntando os dois textos, o leitor terá um guia dos locais onde consumir cafés de qualidade na cidade e uma amostra destes cafés.

Como sobremesa, literalmente, temos a segunda receita da série “Zé Come”, em que nosso wunderkind José Pedro Fonseca foi mais uma vez intimado a utilizar um ingrediente selecionado pela redação. O escolhido foi o café que, incorporado com a característica empolgação do Zé, contribuiu para uma singela receita de panna cotta, mostrando a versatilidade do grão também como ingrediente. Nosso clown gastro-literário esbanja de estrangeirismos para desnudar a empulhação dos coulis, da batida fórmula de oferecer pratos com nomes em italiano ou francês para justificar o pickpocketting praticado por muitos restaurantes.

Mas o resultado foi bastante além da crítica e da receita. A dissecação da panna cotta é na verdade uma trepanação do Zé. Revelando um pouco de seu passado como cozinheiro aspirante, ele mostra como a técnica está por trás e pode ser aprendida através das mais simples receitas. O que importa é a lição de que devemos usar mais o cérebro do que o coração, como parte de uma cruzada para salvar a panna cotta e todos pratos da banalização, do sentimentalismo culinário (Zé ainda não foi visto recomendando “uma bela pitada de carinho” em suas receitas ) e do George Clooney. É preciso ler para entender.

Seguimos a sobremesa e fechamos este Megafone com um último café. Este mergulho não teve como objetivo fazer de cada leitor um especialista em métodos, torras de grão e assim em diante. Apenas esperamos que esse ato cotidiano seja acompanhado de prazer e reflexão. Filtrado, coado, prensado, o café bem tomado pode nos ajudar a começar um novo momento nessa história.

>> Este texto faz parte da edição #5 de 2017 da Revista da Junta Local <<
Crédito das fotos: Samuel Antonini