Introdução por Thiago Nasser | Texto por José Pedro Fonseca, da Maison do Zé

Na nossa coluna bimensal “Zé Come”, José Pedro Fonseca (que já apresentamos brevemente no primeiro capítulo) nos mostra que uma simples receita e quelques belles mots podem ir longe para quem mergulha na técnica.

Mantendo a tradição, pedimos que Zé utilizasse na receita um ingrediente ao qual ele não é lá muito afeiçoado, o café (do Cafezal em Flor), tema deste número da Revista. Mais uma vez, o recurso ao contragosto se provou a melhor tática para extrair o melhor do nosso colunista. Mais do que uma receita de Panna Cotta di Caffè, temos uma amostra da weltanshauung particular do Zé aplicada à comida.

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Muito pode ser dito – e alguma coisa já devem ter escutado – sobre a panna cotta. É um doce fácil e ideal para impressionar convidados em um jantar. É a resposta italiana dolce far niente ao complicado crème brulée francês da grande cuisine. É o refúgio de restaurantes sem tempo e/ou habilidade para fazer sobremesas mais elaboradas e que sabem que um nome estrangeiro e um coulis de frutas vermelhas é o suficiente para convencer muitos a pagar um preço beirando o exorbitante para degustá-la.

Ela é, também, uma das primeiras receitas que um jovem mancebo tentou fazer muitos anos atrás, numa época onde ele se encontrava num limbo culinário, quando ainda não sabia executar um boeuf bourguignon, mas já sentia que estava na hora de comer algo além de miojo e salsicha no jantar.

Na verdade, não estava muito preocupado com a minha execução. Já estava brincando de cozinhar há algum tempo, as instruções eram bem simples, a fonte confiável e tinha o (extremo) mínimo de habilidade. No entanto, ainda me sentia uma fraude. Até então a maior parte das receitas que eu tinha arriscado vinham de revistas onde a comida não era comida, mas um acessório de um lifestyle. As receitas eram um complemento semi-irrelevante de, por exemplo, um ensaio fotográfico sobre a vita do signore Giorgio Clooney no Lago Como (aliás, molto dolce questa vita!). Lá estava ele e sua bella figura com uma colher de panna cotta indo de encontro ao seu famoso sorriso – fazer a sobremesa então era um jeito de aspirar a ser igual ao George para alguns e estar, digamos, mais próximo dele para outros.

Mas esta receita não era assim. Ao invés de várias fotos de um château (havia uma foto, em preto e branco), parágrafos sobre as propriedades da gelatina, proporções de ingredientes, como alterações afetavam o produto final, escolhas subjetivas. Ali estava exposto o porquê por trás do processo e o que antes seria incompreensível e aleatório agora fazia sentido. De repente, além de executar a receita, eu também podia alterá-la de uma maneira previsível, corrigi-la se algo desse errado, aplicar o conhecimento adquirido em outros pratos ou, quem sabe, até criar alguns.

Em homenagem àquela receita que me abriu portas, espero humildemente fazer o mesmo para quem quiser se arriscar aqui ao fornecer uma breve anatomia dos seus ingredientes principais. Sei que algumas pessoas têm uma certa aversão a medidas precisas e um método culinário mais “científico” e acham que para o ato de cozinhar basta o “amor”. Já experimentei muitas coisas feitas com tal produto – algumas inclusive com ele aparente na lista de ingredientes – e posso dizer categoricamente que ele não é algo que transforma magicamente qualquer coisa deliciosa, aliás, muitas vezes parece ter o efeito contrário.  Como diria (mais precisamente, como eu parafrasearia) um grande cozinheiro, “você pode cozinhar com o coração, mas não é necessário desligar o seu cérebro”.

Panna Cotta di Caffè
8 porções

Panna Cotta
410g creme de leite fresco
130g leite
50g açúcar
4,6g gelatina (1,5 colheres de chá)
20g café em grãos
sal
melado

Streusel
25g farinha (3 colheres de sopa)
16g açúcar (3 colheres de chá)
12g açúcar mascavo (1 colher de sopa)
30g manteiga em temperatura ambiente
60g nozes (½ copo)
sal

Creme de leite/leite
A maior atração da panna cotta é a sensação de riqueza que ela deixa na boca e essa sensação é diretamente relacionada à gordura. Quanto mais, melhor. Tradicionalmente, ela é feita exclusivamente com creme de leite, mas essa pequena proporção de leite ajuda a não tornar a sobremesa excessivamente pesada, mas sinta-se à vontade para ignorar esta recomendação. Não perca tempo com creme de leite de caixinha. Ele contém muito menos gordura do que o creme de leite fresco (17% contra 35%), além de conter vários espessantes que bloqueiam o seu sabor.

Açúcar
A proporção de açúcar é relativamente baixa, em torno de 9% (para algo ser inequivocamente doce essa proporção deve estar em torno de 15-20%), porque a panna cotta geralmente é servida com alguma calda mais açucarada, geralmente o onipresente coulis. Como o sabor principal aqui é café, um adoçante mais robusto e tostado como o melado me pareceu mais adequado.

Gelatina
Se houver demais, a panna cotta pode ser usada para jogar basquete, se houver de menos, vira um milk-shake. Normalmente recomendam utilizar 1% do peso do líquido, mas como queremos que a panna cotta fique quase um travesseiro de penas de ganso envolto em seda, diminuímos um pouco para 0,85%.

Café
Aqui há liberdade total para experimentação. Não fiz muitos testes com quantidades, torras diferentes e tempo de infusão, então um aficionado pode experimentar eternamente. Já eu, tomo meu capuccino com açúcar.

Streusel
A panna cotta servida sozinha é boa, mas meio unidimensional. Ela é doce e macia e mais nada. O streusel entra com uma crocância para contrastar com essa leveza tornar cada mordida mais interessante.

1. Quebre os grãos de café com uma panela pesada e coe para remover os pedaços menores.

2. Adicione a gelatina ao leite.

3. Faça a infusão – coloque 100g do creme de leite (deixe o resto na geladeira) e café em uma panela. Ferva o creme, retire do fogo e deixe de lado por 30 minutos a uma hora. Passe o líquido por um coador fino e junte com o resto de creme.

4. Esquente a gelatina e o leite em fogo baixo até ela derreter, o que não deve demorar, pois ela derrete por volta de 35º C. Adicione o açúcar e uma pitada de sal e misture até ele dissolver. Evite ferver o leite – a potência da gelatina diminuirá.

5. Adicione o leite ao creme de leite frio, misture e coloque em ramequins, copos ou, se quiser ir para o lado lúdico, em xícaras de café. Coloque na geladeira por no mínimo 4 horas.

6. Streusel: aqueça o forno a 160º C. Para fazer num processador, adicione a farinha, açúcar, mascavo, manteiga e uma pitada de sal e dê umas 4-5 pulsadas, até que não haja farinha seca. Adicione as nozes e dê mais umas 2-3 pulsadas. Coloque num tabuleiro e asse por uns 10-15 minutos, mexendo no meio do caminho. O streusel está pronto quando ficar marrom-escuro, da cor de canela.

7. Caso você queira viver perigosamente e servir a panna cotta fora do molde, faça o seguinte. Esquente uma panela pequena com água, não quente o suficiente para queimar ninguém, uns 50º C deve ser o suficiente. Passe uma faca fina por volta do perímetro do ramequin e coloque-o dentro da água por alguns segundos (talvez seja necessário fazer isso mais de uma vez). Vire o molde num prato e sirva com o streusel e o melado.

>> Este texto faz parte da edição #5 de 2017 da Revista da Junta Local <<
Crédito das fotos: Samuel Antonini