Esse texto é a segunda parte de uma série em que abordaremos a questão do crescimento dos produtores da Junta Local. Ele se baseia em visitas e entrevistas feitas em 2019 mas também em relatos mais recentes sobre os desafios trazidos pelo coronavírus.
E a cozinha virou fábrica no mercado – Parte I
Blin e Infuze
Por Thiago Nasser
Em maio de 2019 a equipe da Junta Local se dirigiu ao CADEG, tradicional mercado do Rio de Janeiro, localizado no bairro de Benfica. O objetivo não era voltarmos carregados de lá com verduras, vinho, bacalhau ou flores, motivo que leva milhares de pessoas para lá toda semana, mas sim visitar o espaço de produção de uma série de produtores da Junta Local que nos últimos meses havia se instalado por lá: Blin, Infusiasta (que na época se chamava Infuze), Purifica e Devas. Para estes membros da nossa comunidade, a mudança representava um passo adiante no crescimento de seus empreendimentos, fazendo a passagem de uma cozinha doméstica para um local exclusivo e programado para a produção, isto é, uma fábrica, ainda pequena o suficiente para caber numa das “lojas” que ocupam os corredores transversais à avenida principal de circulação do mercado. Para além do crescimento, a mudança também representava uma transição do amadorismo para o profissionalismo, com todos os desafios daqueles que buscam equilibrar a sustentabilidade de um negócio com a paixão e o propósito. Estes produtores haviam começado seus projetos mais ou menos na mesma época, com uma ideia na cabeça e um potinho na mão, por assim dizer. Alugar e reformar um espaço, comprar equipamentos era assumir a brincadeira como trabalho.
De uma perspectiva mais ampla, a ocupação do reduto, ainda que diminuta, simbolizava que o movimento de pequenos produtores que começara alguns anos antes havia, literalmente, conquistado território dentro do panorama alimentar da cidade.
Um ano e meio e uma pandemia nos separam da visita, o que torna o retrato daquele momento um tanto desatualizado. Contudo, ao inquirir sobre o agora de cada um dos produtores visitados naquela manhã sobre o que mudou desde então, compensamos a perda da nitidez da foto com uma visão mais clara e dinâmica da jornada de conquistas e revezes daqueles que buscam transformar o sonho de viver pela e para a comida boa, local e justa em realidade.
A primeira parada foi na loja compartilhada pela Blin e Infusiasta (falaremos sobre Purifica e Devas no próximo texto da série). Após uma reforma, o espaço, impecavelmente limpo, foi azulejado e ocupado por estantes para abrigar os muitos desidratadores usados na produção dos rolinhos, caldos e chás, geladeiras para estocar insumos e uma bancada de inox de trabalho. O compartilhamento do espaço é fruto da praticidade mas também fruto da amizade que se formou entre Catarina Borba, idealizadora da Blin, e Ellen Fonte, criadora da Infusiasta. Ambas se conheceram numa das primeiras feiras da Junta Local. Catarina, como expositora, ensaiava os primeiros passos de seu projeto de snacks saudáveis; Ellen, como frequentadora, já tramava uma maneira de unir sua formação de bióloga com a paixão pela cozinha. Ellen abordou Catarina na barraca para saber mais dos produtos e a conversa chegou no tema “desidratadora”. Alguns dias antes, Catarina havia visto no Facebook uma postagem feita por alguém que buscava um destes aparelhos e pensou que fosse Ellen: “Foi você?”. A resposta: “Não fui eu, mas sou eu!”. Dali surgiu um convite para Ellen ir até uma cozinha na Vila da Penha para Ellen conhecer o tal equipamento.
Catarina, formou-se em comunicação, mas ouviu o chamado das panelas. Trabalhando numa cozinha de alta gastronomia na França, conheceu a técnica de desidratação, que concentra sabor e favorece a conservação nutricional dos alimentos ao não submetê-los ao aquecimento. Ao regressar ao Brasil e mirando no exemplo de outras empresas, decidiu começar a Blin (“boa, leve e natural”), focada no desenvolvimento de snacks saudáveis com base na utilização da técnica e no uso criterioso de ingredientes, quase sempre orgânicos. O chamado das panelas foi logo seguido pelo chamado do empreendedorismo, vislumbrando o potencial da sua ideia se tornar uma empresa. Na empolgação do momento, sonhou até mesmo em poder exportar seus produtos, mas com a experiência sua vontade era que “todo mundo tenha um potezinho de Blin em casa… E isso requer investimento, não tem receita milagrosa, seja tempo na produção, suando caminho ou outra coisa”.
No começo foram chips de couve e inhame, depois vieram os rolinhos. Os testes começaram em casa e depois evoluíram para ocupar a cozinha de um imóvel vazio do sogro. Tendo a reação dos clientes nas feiras como termômetro e compreendendo as dificuldades de uso de determinados ingredientes, foi refinando sua linha de produtos até chegar também nos caldos, criando uma alternativa totalmente artesanal e sem aditivos aos famigerados cubinhos industrializados.
No dia da nossa visita acompanhamos o processo de fabricação do caldo de legumes. Todo o processo segue uma receita clássica francesa, sem truques ou atalhos: legumes, ervas aromáticas, água, tempo. Mas em seguida ocorre o processo de redução, secagem e desidratação, que produz placas sólidas de caldo – que vimos dispostas nas “gavetinhas” das desidratadoras – trituradas e moídas até se chegar ao pó. O caldo é um dos best sellers, mas na carteira de caldos da Blin também se encontra um caldo de shiitakes e inhame (o primeiro a partir de cogumelos fora de padrão do colega de Junta Local, Cogumelos Beira do Rio, combinado com o inhame, produto orgânico que se encontra o ano todo) e um caldo de tomate que ganha cor e equilíbrio ao se somar com a beterraba).
Também apreciamos em loco um pouco do processo de fabricação dos rolinhos que fazem muito sucesso com as crianças. Novamente entra o conhecimento técnico de Catarina, pois o rolinho é baseado nos “fruit leathers” [couros de fruta] combinado à sua obstinação para determinar, após testes, trabalho com fornecedores e interação com público, as melhores opções. Açaí, maracujá e morango são sabores perenes e tiros certo, mas já experimentos ousados já renderam outros sucessos que foram mantidos na linnha, caso do rolinho de scoby feito em parceria com o K.Probióticos.
Apesar de toda parafernália e da expansão do negócio, que naquele momento produzia mais de 400 potinhos de caldo mensais, Catarina ainda era a principal encarregada de produção, recebendo ajuda duas vezes por semana de uma colaboradora. Estar na CADEG, para ela, também significava estar mais perto de fornecedores (pois muitos não entregam em endereços residenciais) e também criar uma linha mais bem definida entre trabalho e vida.
Igualmente responsável por todos os processos de produção era Ellen, com quem resumimos o tour do espaço e acompanhar parcialmente parte do processo de produção de um chá. A infusão de ervas, aliás, foi como ela decidiu juntar o conhecimento de biologia com a vontade de trabalhar com gastronomia do qual falamos acima, nos tempos das primeiras feiras. Apaixonada por chás, Ellen sentia falta de chás produzidos localmente que explorassem a riqueza da biodiversidade brasileira. Chá, aliás é uma forma tecnicamente inadequada de se referir ao seus produtos, na medida em que não utiliza a camellia sinensis. Alfavaca, capim limão, açafrão da terra, frutas…por que não se aproveitar de toda essa gama de produtos? Foi um período de experimentos e busca por fornecedores locais de insumos até chegar a seus primeiros potinhos. Na “fábrica” da CADEG vimos todo processo de cuidadosa lavagem e desidratação que resultam em potes repletos de aromas.
Olhando para a evolução de seu empreendimento, seu desejo era focar em alguns processos, como plantar, e terceirizar outros, como a secagem. “Em Lumiar tenho alguns amigos, talvez terceirize algumas coisas…”
Corte para hoje.
A Blin continuou sua trajetória de expansão, diversificando seus pontos de venda e consolidando sua linha de produtos. No entanto, ao nos atualizar com Catarina sobre a situação da CADEG, soubemos que a Blin estava de saída da CADEG. Os custos fixos do espaço, a necessidade de adequar o espaço para um propósito que não era para o qual tinha sido proposta estavam além do que a empresa podia cobrir, principalmente depois da crise que já vinha instalada, agravada pela pandemia. Mas a decisão também foi afetada pela frustração com o ambiente da CADEG, que na sua avaliação reúne vários elementos para ser um local vibrante para empreendedores e novas iniciativas, mas que fica aquém do seu potencial.
Catarina também está grávida e aguarda a chegada de Maya em outubro. Viver a maternidade também a fez decidir encerrar temporariamente as atividades da Blin, ressaltando sua vontade de ter liberdade para “parar tudo, sem vitimismo”.
“Vamos tomar um fôlego para voltar a poder investir em mais coisas, em não apenas pagar as contas no final do mês”.
Ellen, por sua vez, segue temporariamente na CADEG. No último ano, seu empreendimento chegou a perder o fôlego em alguns momentos, e o desafio de ter que mudar o nome da marca por causa de uma contestação por parte de uma grande marca conhecida. A situação foi contornada, um amigo virou investidor e ela retomou a produção. A pandemia a fez perder vendas, o que ela compensou na Sacola Virtual e na loja própria online. Agora ela contempla uma mudança para… Lumiar.
O relato da visita à CADEG será continuado. Encerramos esta parte com uma fala de Catarina que surgiu em resposta a uma pergunta sobre o atual momento:
“A gente fala sobre acertar e errar, mas é difícil falar do erro antes de acontecer o acerto”.
O futuro está sendo redesenhado, mas é certo dizer que não há erro em falar dos erros.
Fotos por Samuel Antonini