Por Luísa Coelho e João Peres – O Joio e o Trigo.

Quando as fórmulas infantis chegaram, nos anos 60, a empresa não sabia o que fazer com o leite condensado, até então indicado para bebês. Foi então que decidiu “reler” os doces brasileiros, forjando uma relação de afeto com as donas de casa

 

“É um mea culpa aqui que eu vou conversar com São Pedro quando chegar a hora.” Débora Fontenelle carrega um sabor agridoce. Três décadas de trabalho à frente do Centro Nestlé de Economia Doméstica trazem boas recordações, mas um sentimento de culpa que volta a todo instante. Um período de ideias simples, porém geniais, que moldaram para sempre a culinária brasileira.

Pudim de leite, beijinho, papo de anjo: o trabalho da corporação suíça foi tão habilidoso que, hoje, a versão “tradicional” dos nossos principais doces é feita com leite condensado. Ou melhor, com Leite Moça. O Prêmio Top of Mind, do jornal Folha de S. Paulo, pergunta todo santo ano: “Qual a primeira marca que vem à cabeça?”. A Nestlé ficou em primeiro lugar em dez anos, num total de 27 edições, disputando cabeça a cabeça com Omo e Coca-Cola.

O Brasil é o maior consumidor de leite condensado do mundo. De acordo com dados da própria empresa divulgados em 2020, são sete latas de Leite Moça por segundo, o que dá 220 milhões de latas por ano. É mais ou menos uma lata por brasileiro. Isso sem contabilizar as outras marcas.

O país sempre teve predileção pelos doces, o que se explica pela abundância de açúcar graças às imensas plantações dos tempos das colônias. Quando chegou ao Brasil, na segunda metade do século 19, a Nestlé encontrou um campo fértil por onde avançar. O leite condensado, recém-criado para alimentar soldados nas trincheiras, precisava seduzir novos consumidores.

O leite condensado chegou ao país com nome gringo. Milkmaid era difícil de pronunciar e, então, a turma apontava para a moça da lata e pedia o leite da moça. Em 1921, quando a Nestlé abriu uma primeira fábrica por aqui, em Araras, no interior de São Paulo, adotou de vez esse nome.

Nesses tempos, a corporação já ensaiava aquilo que faria à perfeição nas décadas seguintes: tocar o terror. “Seria capaz de arriscar a vida de seu filhinho sentando-o na janela de um arranha-céu? Certamente que não! Entretanto, dando-lhe leite de procedência duvidosa, está pondo-o em perigo da mesma forma”, diz um de muitos anúncios.

A Nestlé, pelo menos a Nestlé do Brasil, talvez tenha sido a empresa mais habilidosa na exploração dos medos surgidos da urbanização e do discurso científico. A ideia de que uma alimentação industrial é superior e de que existe um corpo constantemente em risco (especialmente o corpo do bebê) foi nutrida com carinho e dinheiro.

Para isso, a corporação ensaiou uma relação direta com as consumidoras: cupons para receber produtos gratuitamente, cartilhas que ensinavam sobre essa admirável vida urbana e livretos de receitas começaram a se tornar uma prática. Em 1942 foi criado o Serviço de Colaboração Familiar, ao lado de uma invenção que, vista hoje, é realmente vanguardista: a elaboração de uma personagem, Ruth Beatriz, que dava conselhos às mães sobre a alimentação dos bebês.

Um bode na sala

“O caderno de receita era assim toda a vida emocional que a mulher podia ter”, diz Débora Fontenelle, nutricionista que hoje tem 83 anos. Poderia ser apenas mais uma pessoa aposentada com suas recordações da juventude, mas o irônico da história é que Fontenelle é a pessoa que mudou para sempre a vida do caderno de receitas. Também não deixa de ser irônico que o início do trabalho dela marque também o fim dos tempos mais glamourosos do caderno.

“Era ali que a dona de casa anotava a receita que ela fazia. Ao mesmo tempo contava que naquele dia o marido não tinha falado com ela ou que a tinha tratado mal. Tinha toda uma parte de emoção da mulher, mas muito fechado.”

Como explicar quem é Débora? A primeira coisa a saber é que é uma pessoa central numa mudança enorme na vida de muitos brasileiros. A segunda é que ela é estranhamente desconhecida do público em geral. Nós sabemos muito sobre doces. Todo brasileiro conhece o pudim de leite (condensado) que ela inventou. Mas Débora é uma desconhecida.

Há quatro ou cinco anos queríamos entender como a Nestlé havia assumido o papel de educadora das brasileiras. Encontrar Débora, no final de 2020, foi como encontrar o mapa do tesouro.

Em 1959, ela estava no final do curso de graduação na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo quando um professor a indicou para uma vaga na corporação. “Eu perguntei para ele por que tinha sido eu. Não achava que tinha o perfil. Ele falou: ‘Ah, porque você tem umas perguntas muito loucas’.”

No lugar de vacas suíças, ela se deparou com um bode na sala: as recém-criadas fórmulas infantis prontas para consumo. Se a empresa esperava lucrar horrores ao desestimular ainda mais o aleitamento materno, de outro lado projetava uma redução grande nas vendas de leite condensado. E, então, tudo mudou.

Quando se propõe que o Estado crie políticas públicas para promover a alimentação saudável – e, em particular, quando se propõe restringir a publicidade direcionada a crianças –, as empresas alegam que simplesmente atendem a demandas da sociedade. Dizem que elas não criaram nenhum hábito. Não moldaram nossas atitudes. Não influenciaram nossa conduta.

A maneira como a Nestlé reescreveu a doçaria brasileira joga tudo isso por terra. Em coquetéis, tapiocas, doces, saladas de frutas: o Leite Moça e suas imitações se inscreveram como um amálgama capaz de conectar quaisquer ingredientes. Uma estranha liga que, com uma quantidade hedionda de açúcar, torna agradável qualquer preparação.

Durante as eleições de 2018, Jair Bolsonaro acrescentou uma camada de estranheza – entre tantas outras – quando apareceu no maior telejornal do país comendo pão com leite condensado. Ficamos pensando qual terá sido a reação dos diretores da Nestlé: ganharam mais uma receita? Odiaram ter a imagem tão doce associada a essa indócil criatura?

Uma dissertação de mestrado apresentada em 2010 à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP se concentra sobre a transmissão do conhecimento culinário no Brasil do século 20 e dá especial atenção para o caso de sucesso da Nestlé. A autora,  Débora Santos de Souza Oliveira, conta que Débora Fontenelle visitou cursos de culinária Brasil afora e constatou que nem 10% das receitas eram feitas com Leite Moça.

A Nestlé começou um trabalho de persuasão das professoras de culinária, enviando receitas, materiais, cursos e produtos. Mais ou menos como hoje em dia as marcas fazem com influencers. Segundo a dissertação de Oliveira, as vendas de Leite Moça cresceram 25% entre 1960 e 1962.

A gente olhou os dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Em 1961, o Brasil produzia 16 mil toneladas de leite condensado por ano. Uma década mais tarde, era o dobro. E em 2018 foram 64 mil toneladas, ou quatro vezes mais em relação ao início do trabalho de Débora Fontenelle. Hoje, a empresa diz que 70% das receitas de doces no Brasil levam leite condensado, uma informação difícil de ser checada.