Texto por Bruno Negrão, da equipe Comuna e da Junta Local

Aproveitamos o momento e a feira temática de domingo, dia 27 de novembro, Junta Local | Carne, para compartilhar um pouco do processo da Cozinha da Comuna nos últimos meses e o que pretendemos com isso.

Vivemos um momento singular de nossa Cozinha em que, com ajuda de amigos e parceiros, nos aproximamos, mesmo que um passinho só, de nossas inspirações e referências. Abaixo contamos um muito dessa história, de como conseguimos evoluir coletivamente com outros projetos e agora redefinir por completo a forma como trabalhamos e lidamos com nossos ingredientes e produtores parceiros.

O desfecho vai gerar rebuliço. Vai mexer com os brios daqueles que ameaçaram quebrar a casa se tirássemos o Trash Humpers do cardápio ou chorar como Kate vendo o Pala afundar para a terra da nostalgia. Sim, chegou o momento de dizer adeus, mas não sem antes entender bem o que vem pela frente.

O início da Comuna: entre a utopia do acesso direto e o dia-a-dia de uma cozinha
Começamos a Comuna, quase meia década atrás, com a ideia de que a nossa Cozinha seria um elemento de transformação pessoal, cultural e, por que não, social. Já estávamos sob a influência daquilo que, copiosamente, absorvíamos do mundo (leia-se internet): receitas, how tos, tutoriais diversos, Julia Child no YouTube, resenhas de lugares interessantes pelo mundo e pela cidade (de café fair trade a mercados sem embalagem e restaurantes que valorizam a qualidade de seus ingredientes acima de tudo).

Dessa mistura e com o espírito faça-você-mesmo fomos crescendo, saindo da casa do amadorismo (sem deixar de amar o que se faz, de ser um amador) em direção a uma postura profissional (o que chamo de empirismo bem aplicado). Ao longo dos anos, aprendemos com nossos erros, rimos de nossas (sejamos francos) cagadas, moldamos e reformulamos o que não dava certo. Nesse processo formamos uma equipe unida e a Cozinha se estabeleceu como um foco de criação dinâmico, participativo, divertido e inquieto.

Entre altos e baixos, uma constante: o respeito que temos pelo que fazemos e o apreço pelos ingredientes, base de qualquer cozinha. Ter controle sobre ingredientes muitas vezes significa ter que produzir tudo na casa, ou seja, preparar o pão, moer a carne, fazer os molhos e tudo mais. Esse processo que hoje começa a parecer um excelente lugar comum, sempre foi uma premissa inegociável para nós. O outro desafio seria tentar à nossa maneira estabelecer um elo direto com produtores locais. Cozinhar na Comuna se tornou um esforço para hackear a cadeia alimentar tradicional e criar uma rota de fuga da opressão do sistema alimentar atual.

O surgimento da Junta e a materialização de um sonho coletivo
Pessoalmente, a busca por uma forma de acesso a esse tipo de produto passou a consumir uma fração cada vez maior do meu tempo e energia. As estruturas são viciadas, os pequenos produtores seguem nas mãos de atravessadores, que superfaturam o seu valor dentro dessa cadeia disfuncional. Exemplos cabais: os traficantes de queijos de leite cru, por via de regra, pagam R$5 em uma peça e a vendem por R$35 ou muito mais; grandes redes varejistas fazem bullying com pequenos produtores, forçando-os a aceitar os preços baixos que são exigidos (R$2,50 por uma bandeja de shimeji, vendida a R$14), sob o risco de perderem toda a compra de sua colheita para seu vizinho e, por questões de centavos, verem todo seu esforço apodrecer. São essas redes e atravessadores que povoam a cartografia do fornecimento de alimentos para restaurantes e outras cozinhas industriais, tudo o que queríamos evitar.

Existem poucos canais de acesso direto ao produtor, e a percepção dessa demanda contribuiu para investigar mais a fundo esse cenário. Desse esforço e da combinação de saberes e vontades, surgiu a Junta Local. Conhecer os outros tios da Junta, meus sócios Thiago e Henrique, foi apenas uma questão de tempo e capricho do acaso. Bastou uma amiga e um interesse em comum. Naturalmente, a Comuna acolheu de imediato a ideia, compartilhou suas redes e proporcionou um impulso. A Cozinha da Comuna foi junto.

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A serendipidade do cogumelo
Um parêntesis para falar do acaso, pois esta foi uma força que estruturou a nossa rede. Lembro de aprender com um amigo o significado da palavra “serendipity” e de ouvir sobre como isso moldou sua visão da comida, da vida e do mundo. A origem da palavra inglesa vem de um conto persa, “Os três príncipes de Serendip”, criado no final do século XVIII por um escritor inglês (que garantiu a palavra no léxico oficial inglês). A história narra as aventuras de três príncipes do Ceilão, atual Sri Lanka, que viviam fazendo descobertas inesperadas, cujos resultados eles não estavam procurando realmente – o tal momento “Eureka!” que só se concretiza quando estamos abertos ao inesperado e atentos ao nosso redor. Talvez recorrer a barbarismos seja a melhor forma de narrar a série de acasos que desencadeou todo o processo de mudança que vivemos hoje em nossa cozinha.

Em agosto de 2014, resolvemos organizar a primeira feira da Junta e, após uma convocatória feita via Facebook da Comuna, aos poucos, produtores de todos os tipos foram chegando. Quem também viu a chamada foi a Denise, que ocupava uma das mesas vagas no escritório da Comuna. Na ocasião, Denise comandava uma produtora e filmava um de seus projetos lá no interior de Minas, na região próxima a Lavras. Fabrício, tio do namorado de uma das atrizes do projeto, cedeu o sítio para ser o QG da equipe durante filmagens. Ex-funcionário público, havia decidido abandonar tudo e se dedicar ao cultivo de cogumelos no sítio desocupado da família. Após um período turbulento de aprendizado e ainda tendo que lidar com grandes redes varejistas como sua a única possibilidade de venda, pensou em desistir. Foi aí que Denise comentou sobre um pessoal organizando uma feira de pequenos produtores de comida na Comuna, incentivando-o a entrar em contato. Um e-mail, uma visita e uma feira depois, Fabrício passou a fazer parte da Junta Local e, logo em seguida, a contribuir com seus cogumelos para o cardápio da Comuna. Mal podíamos imaginar que desse encontro não só nasceria uma parceria, como também seria o fator principal para concretizar um sonho antigo, o fim de uma busca e o início de uma história.

De lá pra cá, já são muitos produtores da rede que passaram a figurar em nosso cardápio ou em nosso estoque. De hortifruti a sorvete, de cogumelos a kombuchás. Mas sempre ficou aquele buraco, aquela carência que só inflava nossa crise e nos expunha à velha hipocrisia: ótimo fazer uma carta de drinks usando produtores da Junta, mas no fim das contas nosso carro-chefe é o hambúrguer. E a nossa carne, de onde vem?

Aroldo e suas novilhas
Para quem é do ramo (e não precisa ser, basta estar atento quando se dá um rolê no mercado) sabe que, para ter acesso a uma carne certificada e de procedência garantida, há um preço alto a pagar. As boutiques e outros intermediários gourmet sabem aproveitar muito bem o fetichismo que se cria em torno de uma carne “diferenciada”. Se conseguimos incluir diversos produtores da Junta na dinâmica da Comuna, a busca por uma outra carne seguiu lenta, ofuscada pela loucura do dia-a-dia e das contas a pagar.

Foi em junho desse ano que o fato ocorreu. Fabrício, nosso guru dos cogumelos e amigo, com toda sua serendipidade (sacou, tio?), uniu dois mundos. E foi aí que conhecemos o Aroldo e suas novilhas.

Na viagem que fizemos em 2015 para gravar um episódio da Junta Local Vai com o Cogumelos Umami (atualmente em pós-produção), Fabrício aproveitou para nos apresentar um grande amigo da região. Depois de muitos anos vivendo em Belo Horizonte, Aroldo e sua esposa Ana, decidiram voltar para Perdões e trabalhar com criação de gado, sua grande paixão. Não demorou muito para perceber que toda a sua dedicação na melhora e criação do gado não era valorizada pelos grandes frigoríficos. Sua margem de lucro reduzida obrigava a criar muitos animais para conseguir sustentar a fazenda. Parou de vender seus gados para frigoríficos e criou, na própria fazenda, uma estrutura para desossa, tendo assim condições de comercializar diretamente a sua carne.

Após esta decisão de construir a infraestrutura, chamou o Fabrício para um almocim – daqueles que terminam com dois dedim de cachaça – e relatou a iniciativa de vender a sua carne e o receio de não encontrar pessoas e restaurantes que valorizam o seu trabalho. Não foi difícil para o Fabrício fazer o match. Um espaço que promove o contato direto do produtor com o consumidor (Junta Local) e uma hamburgueria carioca que sonha em encontrar uma carne de procedência com um criador de gado que precisa de atingir novos compradores (Comuna).

A visita à fazenda apenas confirmou nossas expectativas. As novilhas são criadas soltas até um ano e nove meses, depois são confinadas em currais para acertar a marmorização e outras nuances que tornam a qualidade de sua carne inigualável – passam a se alimentar de silagem produzida na própria fazenda (basicamente milho, capim e um pouco de sal, o único ingrediente não produzido lá), triturada e distribuída diariamente para os animais. Durante esta etapa, nenhum hormônio é administrado e os antibióticos são usados apenas em último caso (diferente do lobby do agronegócio e das indústrias farmacêuticas que nesse eterno namoro observam, em êxtase, o ciclo vicioso das péssimas condições de criação do animal e o uso abusivo de remédios). Todo o processo de criação, abate e desossa é acompanhado por sua filha, nutricionista na Universidade Federal de Lavras. Além do sabor e textura de sua carne, o percentual de proteína contida nela gira em torno de 26%, enquanto que a carne convencional contém aproximadamente 19%.

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Ver de perto o cuidado com o bem estar dos animais nos faz pensar em que momento consentimos em abrir mão disso, e aceitar goela abaixo o que Tony Ramos ou Jamie Oliver falam que é bom.

O bicho e o sub-bicho, e a massificação da insanidade
Vale aqui pontuar que esse papo de bicho feliz e abate humanizado é conto da Carochinha. Não nos iludimos com isso. Sabemos que nenhum animal abatido pela intervenção humana possa ser categorizado como um bicho feliz (uma necessidade de antropomorfizar a nossa relação com nossas “presas”) e que um abate só pode ser menos cruel do que é, nunca “humanizado”. Nada pode te absolver do fato imutável de toda história que envolve comer carne, seja o tipo que for: a morte. Um bicho não é feliz por viver solto. Ele só é bicho de verdade, que cumpre plenamente a sua “bichisse”. Nasce, cresce, vive e morre como um bicho. O bicho é criação da natureza, o sub-bicho é criação humana.

O sub-bicho é aquilo que vemos cotidianamente no mercado, açougues etc. Fragmentado, embalado em plástico e isopor, habitando prateleiras frigoríficas repletas de pedaços de outros sub-bichos. Cada um vindo de diferentes lugares, mas com trajetórias semelhantes. Confinamento, tortura, hormônios, lagoa de excrementos e sangue, confinamento, antibióticos, excremento, ração transgênica que desafia sua dieta natural, confinamento e abate – tudo isso massificado, em uma escala exponencial.

São os excessos da tentativa humana de transformar tudo que se vive e respira em commodities. Os malefícios para saúde, meio-ambiente, para as vidas de quem trabalha e o descaso absoluto pela vida do animal já são temáticas abordadas cotidianamente, por veganos, vegetarianos e onívoros. Achar uma possibilidade de ruptura e de uma vida fora desse sistema e dessa opressão é, no mínimo, um privilégio, mas também uma baita responsabilidade.

O aproveitamento total e os novos cortes da Comuna
Afinal, será que realmente podemos criar sem nenhuma premissa, sem nenhuma restrição? Ou será que a melhor forma de criar é se confrontar com limitações, se desafiar com o que há de fato e trabalhar para superá-las e resolvê-las? Isso vai além de só comprar maçã no outono ou abacaxi no verão. A sazonalidade é apenas uma das premissas da natureza a serem respeitadas. No caso da Comuna, precisamos repensar muitas coisas, mas sobretudo a forma que usávamos a carne.

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Até pouco tempo, usávamos dois cortes bovinos em nossos hambúrgueres: acém e cupim. Sempre meio a meio. Isso nos levava a uma demanda de 150kg de cada corte por semana. Se isso não é um problema quando você está dentro do sistema industrial, numa escala menor, como nesse caso, é simplesmente insanidade. Explico: cada boi possui 15kg de acém. Em uma conta rápida, precisaríamos de dez bois por semana para termos o suficiente para produzir nossos hambúrgueres. De que forma um pequeno produtor, como o Aroldo, consegue manejar, armazenar e escoar as quase duas toneladas de carne restante em menos de uma semana?

A solução era clara: vamos usar o boi (quase) inteiro. Afinal, o que é o hambúrguer senão uma forma de aproveitar as carnes menos nobres de um boi? Mapeamos vinte cortes utilizáveis e a partir deles criamos quatro novos blends. Com a ajuda de Aroldo e sua equipe, vimos o quanto cada corte representa no boi, e pautamos nossos testes a partir daí. Não adianta querer misturar tudo na mesma proporção se cada corte é um corte e tem um peso específico. Por exemplo: o X-lasanha, um dos hambúrgueres do novo cardápio (com pré-estreia na Junta de domingo) é feito com um blend que leva 28% de coxão duro, 26% de peito, 8% de fraldinha, 34% de paleta, 2% de bananinha e 2% de rabo. Dessa forma, conseguimos utilizar quase que integralmente o boi e atingir uma demanda razoável para o Aroldo dar conta: dois bois por semana. Da nossa parte, temos acesso a uma carne com qualidade inacreditável, vindo de um parceiro disposto a aprender e experimentar novas práticas na criação de seus animais e construir uma longa caminhada juntos.

É óbvio que com uma chance dessas não podíamos deixar de embarcar na vontade de mandar nosso cardápio atual pastar e parir um novo. Sim, isso significa dizer que não vai ter mais Boludo, o Pala vai partir e o Trash diz adeus. Nada na vida dura, por que seria diferente por aqui? Mas não é essa a beleza? Não é isso que nos oxigena, o desejo pelo novo, sair das zonas de conforto, chacoalhar a resignação e seguir em frente, rumo ao desconhecido e ao inesperado? Pelo menos, é assim que a nossa cozinha funciona e é para isso que estamos aqui, de terça a domingo. A necessidade de renovação é a única coisa a qual somos apegados.

Crédito das fotos: acervo da Comuna e da Junta Local