Texto por Guilherme Mattoso

Aprovada em dezembro do ano passado, a Lei 7180/2015 é um importante marco para o Rio de Janeiro, pois reconhece oficialmente a gastronomia como cultura. Mas o que isso quer dizer? Esta Lei, na prática, funciona como um instrumento que contribui para dar visibilidade aos modos de vida e às tradições alimentares da população e preservar as atividades produtivas e culturais que são estabelecidas a partir da relação com a comida.

O texto, de autoria do deputado Zaqueu Teixeira, determina quais segmentos são identificados como do setor gastronômico, promove a alimentação saudável em espaços coletivos, como escolas e demais centros de ensino e institui a Semana da Gastronomia no Calendário Oficial do Estado, comemorada na terceira semana de setembro.

A jornalista Juliana Dias, mestre em Educação em Saúde e Ciências (Nutes/UFRJ), criadora do curso de pós-graduação em Jornalismo Gastronômico (FACHA), é uma das pontas de lança desse movimento, idealizado pelo jornalista Chico Junior e fomentado também por nomes como a sommelière Deise Novakoski e a chef Teresa Corção, presidente do Instituto Maniva.

Desde que o texto foi sancionado, Juliana e o Grupo de Trabalho que desenhou o projeto vêm fazendo um verdadeiro tour de force para garantir que a Lei 7180/2015 não termine como um gesto simbólico de apoio à gastronomia, e funcione, de fato, como um instrumento de transformação social.

Confira o bate-papo que tivemos com a Juliana, que explica melhor e aprofunda a discussão sobre este movimento que busca abrir caminhos para que a comida de verdade possa ser referenciada a partir de uma perspectiva que começa com geração de conhecimento e passa por um espectro que subdivide-se em educação, cultura, saúde, ciência, política e meio ambiente.

41_comida-politica-e-cultura-1pbComo surgiu a ideia do movimento em prol da gastronomia como cultura?
Primeiramente, falar sobre cultura no Estado do Rio de Janeiro – que, por decreto do dia 04 de novembro, integraria a Secretaria de Cultura à pasta de Ciência, Tecnologia e Inovação – é uma forma de denunciar uma visão disjuntiva, reducionista e simplificadora da realidade e, ao mesmo tempo, anunciar as possibilidades de contrapor esse modelo de pensamento, trazendo à tona movimentos de resistência e resiliência, que nos permitem apontar outros caminhos possíveis, diferente da solução oferecida pela racionalidade econômica, caracterizada por um modelo social hegemônico que se restringe a imitar ou a reproduzir uma única forma de observar, conhecer e conviver com o mundo. Dito isto, meu caminho para colaborar com esse debate é pela comida, que considero uma lente para compreender e transformar o planeta. No dia 05 de dezembro, quase um mês depois, o governador voltou atrás nessa decisão em função de ampla mobilização popular juntamente com a atuação do Conselho Estadual de Política Cultural.

Ao meu ver, a ideia de pleitear a gastronomia como uma política cultural reflete um desejo dos que atuam nesta área, que se deparam frequentemente com a necessidade de justificar a comida como cultura. No entanto, por mais que essa noção tenha consenso em alguns contextos, no campo da política pública, o segmento da gastronomia é inserido de forma periférica dentro de uma ideia geral de cultura, que reconhece seu valor e importância em diversas instâncias de governo e secretarias, mas, ao mesmo tempo, não tem centralidade, principalmente, no que diz respeito a reivindicar políticas que beneficiem a dimensão da cultura na gastronomia.

Esse movimento começou oficialmente com o Chico Junior. No início de 2015, ele procurou as colegas Deise Novakoski, Teresa Corção e Kátia Watts (SindRio) e eu para uma reunião que aconteceu na sede do SindRio. Nesse encontro, ficou clara a urgência em unir forças para contribuir com uma política para a gastronomia. Chico apresentou a pauta para o deputado Zaqueu Teixeira, presidente da Comissão de Cultura da Alerj, que acolheu a proposta imediatamente. Em junho de 2015, realizamos o seminário “Gastronomia como Cultura”. Desse seminário saiu o Grupo de Trabalho, formado por vinte representantes do setor (agroecologia, cozinha, restaurante, bebidas, educação, entre outros), para elaborar um projeto de lei. Durante três meses, sob a mediação de Morgana Eneile, assessora da Comissão de Cultura, nos encontramos na Escola do Legislativo no Centro do Rio. Foram discussões ricas e propositivas em que pudemos conhecer mais de perto e compartilhar as demandas e desafios de diferentes atores do setor.

A necessidade de ensinar a gastronomia brasileira e fluminense na educação básica foi uma das demandas levantadas nesses encontros, contextualizando uma política já existente, a Lei de Alimentação Escolar – 11.947/2009. Essa lei determina que a educação alimentar e nutricional deve perpassar o processo de ensino-aprendizagem. A Resolução nº 26 (2013) da referida lei afirma que o alimento é uma ferramenta pedagógica. Nas universidades, surgiu a questão da falta de fomento a projetos educativos de gastronomia, com linhas específicas para a área.

Por isso, entre as treze diretrizes do Marco Referencial da Gastronomia como Cultura consta o “estímulo à criação e fortalecimento de cursos técnicos profissionalizantes na área de alimentos e bebida”, “fomentar o estudo das práticas alimentares regionais e locais nos projetos políticos pedagógicos da educação básica no Estado do Rio de Janeiro de forma transversal e interdisciplinar” e “fomentar projetos educativos, artísticos e culturais por meio de agências de fomento de pesquisas e da economia criativa, solidária e colaborativa”.

Mas o ponto de partida foi discutir o que é gastronomia para, a partir dessa consideração, propor as diretrizes do Marco. Cada membro trouxe sua contribuição e o resultado foi uma ideia abrangente e complexa, buscando interrelacionar todas as etapas do sistema alimentar.

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Por que o estado deve investir no desenvolvimento da gastronomia e da culinária fluminense?
A gastronomia está diretamente relacionada com setores vitais para a manutenção e sobrevivência dos 92 municípios que compõem o Estado do Rio, isto é, alimentar a população fluminense com alimentos saudáveis, provenientes de práticas culturais e sustentáveis, alicerçadas na justiça socioambiental. Penso que uma gestão inovadora e de vanguarda deva olhar para aquilo que é trivial e, ao mesmo tempo, fundamental: a comida, um direito humano e bem comum.

Em cada cidade, incluindo o município do Rio de Janeiro, temos uma cultura alimentar viva que produz alimentos orgânicos e agroecológicos por meio da agricultura familiar local, transforma esses alimentos numa rica diversidade de produtos gastronômicos com excelência, mantém tradições de comunidades e povos tradicionais e desenvolve um rico repertório de preparações culinárias. Nas feiras e nas ruas, é possível observar uma efervescente economia criativa movimentada pela gastronomia.

Nesse sentido, há saberes sociais e sabores que devem ser visualizados, reconhecidos, valorizados e fortalecidos por meio de políticas públicas que considerem a dimensão cultural da comida de forma central e estratégica. O Marco Referencial foi constituído tendo a gastronomia como uma importante política cultural para o Estado, que vai da agricultura ao alimento servido à mesa do restaurante, passando por escolas, formação técnica, universidades, educação patrimonial, divulgação e circulação dos conhecimentos sobre as práticas alimentares.

Com o Marco Referencial, o setor pode ter mais força para acessar diretamente outras políticas e ocupar mais os espaços de controle social, como conselho de políticas culturais. A gastronomia, hoje, faz parte da economia criativa, ligada à Secretaria de Cultura, e a Lei específica para o setor pode dar mais visibilidade nessa coordenação, que atente vinte outras áreas.

Qual é a importância da Lei 7180/2015 para produtores, empresários, empreendedores e demais atores ligados ao fazer culinário?
O Marco Referencial vem buscar espaços institucionais e públicos para o fortalecimento da gastronomia como motor importante do desenvolvimento cultural, econômico e social, pautando com políticas já existentes, em nível federal, no campo da educação, patrimônio, segurança alimentar e nutricional, agricultura, saúde e alimentação e nutrição.

Como se formaram as bases do que hoje é a Lei?
Além das treze diretrizes, a Lei determina a criação da Comissão da Gastronomia do Estado do Rio, que será formada por vinte representantes do poder público e da sociedade civil. A eleição dessa Comissão é o primeiro passo para buscar implementar as diretrizes da Lei, pois esse grupo terá o papel de acompanhar e dar visibilidade às orientações determinadas. Estava previsto o lançamento do edital público no dia 21 de novembro, mas em função da extinção da Secretaria de Cultura, não aconteceu.

Em 06 de dezembro, tivemos a notícia de que a Secretaria de Cultura não seria mais extinta. Segundo informações do Conselho Estadual de Política Cultural, a decisão de manter a Secretaria de Cultura aconteceria depois de o Conselho, que envolve a sociedade civil e representantes de dez regiões do Estado, pressionar a Alerj para rejeitar o projeto que fundia as secretarias. Os deputados haviam se comprometido com o grupo. No dia 05 de dezembro, representantes do Conselho se encontraram com a primeira-dama Maria Lúcia, que teria ficado sensibilizada com a causa. Somente após isso é possível retomar o contato com a Secretaria para o lançamento do edital. Dentro do Marco Referencial, destacamos também a Semana da Gastronomia do Estado do Rio de Janeiro a ser comemorada na terceira semana de setembro. Esperamos que este ano possamos comemorar.

O que é preciso para que todos estes esforços não terminem num gesto simbólico de apoio ao setor?
Muita luta e mobilização em prol da comida de verdade, com movimentos da gastronomia, da agroecologia, da agricultura familiar, da segurança alimentar e nutricional, da educação, da nutrição, da cultura, de todos que trabalham e pesquisam com comida em sua diversidade de áreas, campos de conhecimento, sentidos e significados.

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Como você enxerga o futuro da gastronomia no Rio de Janeiro?
Há resistência e resiliência. Há gente boa e do bem nessa luta. Apesar de vivermos um contexto de retrocessos de direitos, a comida é uma luta que engaja, mobiliza, contagia e encanta, porque está ligada à nossa identidade individual e cultural. Eu enxergo uma gastronomia que seja reconhecida por sua complexidade, que não se restrinja apenas ao refinamento da boa mesa, mas seja referência em aprofundar uma noção que começa com conhecimento, passa pela cultura, educação, saúde, comércio e indústria, arte, ciência, política e meio ambiente. Está tudo posto à mesa, diante do prato de comida rege toda a vida: do nascimento à morte, como bem disse Brillat-Savarin.

Crédito das fotos: Samuel Antonini (capa, segunda e terceira fotos) e Mariana Moraes (primeira foto)