A tarefa de contar a história de cada produtor é sempre mais complexa do que imaginamos, a começar pela definição do produtor em si. Sim, nem sempre a história é tão simples: um pedaço de terra, o plantio, o armazenamento, o transporte, a venda, tudo isso orquestrado por um produtor e sua família. FIM. Na realidade, os desafios encontrados em cada uma dessas etapas são muito mais complexos para quem decide fazer comida de forma alternativa, seja produzindo de forma orgânica, ou se encarregando de todas as etapas para encurtar a cadeia de produção. Estes desafios por sua vez levam a organizações e adaptações, que levam à redefinição do produtor. Ele se faz múltiplo através das parcerias, das colaborações, dos arranjos para trabalhar a terra de forma justa com quem a manuseia, dos desdobramentos necessários para fazer que os pontos finais dos raios cheguem até um centro como uma feira ou a Sacola Virtual da Junta Local.

E assim queremos contar a história de um produtor que é bem mais que um produtor, é também professor, técnico, organizador, mobilizador e agregador. O nome desse produtor, um personagem por vezes elusivo e muito discreto, é Marcelo Stumbo. Com ele aprendemos o significado do orgânico. Mas só nos demos conta dessa lição depois. Contemos a história primeiro.

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Marcelo chegou até nós pelas mãos de Rafael Costa e Silva, chef do restaurante Lasai, conhecido pelo cuidado intenso com a simplicidade e qualidade dos ingredientes – cuidado que ultrapassa o discurso e se traduz na prática. Preocupado com a sustentabilidade do trabalho de Marcelo, Rafael entrou em contato com a Junta Local e marcou uma reunião. O Elemento Orgânico não era sustentável vendendo apenas para restaurantes como o seu e para outros pontos de venda tradicionais. Uma saída seria o canal direto com o consumidor.

Logo depois, juntos, participaram na lendária feira no Museu de Arte Moderna na barraca do Elemento Orgânico. Além de produtos frescos, foi vendida uma chuva de batatas fritas com molhos feitos a partir dos temperos cultivados por Marcelo. No final da feira, Rafa simplesmente despejava as últimas batatas diretamente sobre um papel manteiga estendido no tampo de madeira da barraca, enquanto os sobreviventes da feira prontamente besuntavam os disputados palitos remanescentes nos molhos, esguichados sobre o mesmo papel. Marcelo, muito tímido, assistiu a tudo de olhos arregalados.

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O passo seguinte foi a Sacola Virtual. Aos sábados Marcelo entregava muralhas de caixas com produtos trazidos de Teresópolis. Grossas couves, brócolis de um verde cintilante, rúculas com cheiro de pimenta do reino. Ao final do dia voltava para buscar as caixas e fazia o convite. “Vocês podiam nos fazer uma visita”. O convite, feito em voz baixa, parecia quase sem querer.

Depois Marcelo participou das feiras assando batatas-doces e as servindo com os temperos (preparados com a ajuda do amigo Rafa). Se dizendo desajeitado com o público, acabou não vendendo tanto, mas saiu satisfeito pela reação das pessoas ao ver as cores das batatas-doces: roxas, laranjas, brancas. Ao final num cochicho dizia: “Ei aí, quando é que vocês vão lá?”. Sempre prometíamos que sim.

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Até que o dia chegou. Por iniciativa de Catarina Borba, a produtora por trás da Blin, que utiliza as couves do Elemento Orgânico para produzir seus chips desidratados, a visita foi marcada. Ela queria conhecer de perto seu fornecedor. Chamamos nosso intrépido fotógrafo Samuel Antonini em cima da hora e aproveitamos a carona. Saímos bem cedo, o dia raiando, jogando luz laranja sobre nossos rostos bocejantes.

A primeira parada foi na propriedade da Fazenda do Vale das Palmeiras (sim, a do Marquinhos), no distrito de Teresópolis. Marcelo, junto com seu colega, o agrônomo Fernando José Dias e sua família, administram um pedaço da fazenda onde fica uma horta de menos de um hectare. Sob uma cobertura de tela, um tom sobre tom de diferentes verdes de alface, rúcula, beterraba, rabanete e, apontados por Marcelo, outras verduras experimentais cujas sementes Marcelo gosta de pegar com outros produtores e pessoas que as trazem de outras regiões para testar.

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Enquanto Marcelo fazia um balé pulando sobre as fileiras, foi Fernando quem falou. Nos explicou um pouco sobre os processos utilizados ali, os testes com sementes orgânicas, o trabalho em família, os estudos na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Fomos sendo absorvidos pela horta, puxando cenouras da terra, arrancando ervilhas dos pés e comendo as cruas e crocantes. Maravilhados, queríamos ficar ali, como se a plantação fosse uma enorme Sacola Virtual e pudéssemos levar tudo para casa. Cada verdura fresca arrancava suspiros e acabava dentro de uma sacola. Em voz alta já planejávamos e visualizávamos futuras visitas para ajudar no plantio de tomate, onde ficaria a mesa para o almoço coletivo, mas fomos interrompidos por Marcelo. “Vamos, vamos, tem muita coisa para ver ainda!” Por que Marcelo estava tão aflito? Não entendemos muito, mas seguimos as ordens.

Seguimos a sua pick-up vermelha até chegarmos a um sítio, já quase em Teresópolis. Lá fomos apresentados a Ali, um agrônomo senegalês transplantado para o Brasil que, com seu jeito falante e sorrisos, automaticamente nos cativou. Ali presta consultoria para vários produtores da região, auxilia na venda dentro de um programa de agricultura familiar local e complementa a produção do Elemento Orgânico (e vice-versa) de acordo com as lacunas deixadas por uma chuva ou seca fora de hora.

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O passeio pela horta dele, de onde saem muitas das batatas-doces coloridas do Elemento Orgânico, foi uma verdadeira demonstração na prática de cultivo orgânico que nos fez entender que o termo não é um mero rótulo tascado em produtos para que ele possa ser um pouco mais caro no supermercado. O orgânico, a agroecologia é uma filosofia da natureza. Os elementos da natureza precisam interagir, se auto-complementar. “Aquela fileira de bananeiras ali, tá vendo? Ajuda a sombrear aquela horta”. “As galinhas? Cada dia elas fazem um caminho diferente para deixarem seu rico esterco em pontos diferentes da horta”. “O feijão complementa aquilo dali, quase não preciso trazer nada de fora”. O mais importante, no entanto, é entender o homem como um dos elementos dentro da natureza, ele precisa PARTICIPAR da natureza. A administração de qualquer cultivo, assim como qualquer trabalho, não é duradouro e efetivo se não for feito de forma prazerosa. “Se é chato, não é orgânico”. Tem toda razão, Ali.

Em companhia da família de Ali, nos alongamos um pouco para tomar um café, mas logo Marcelo nos cutucou: “Precisamos seguir viagem, o pessoal lá no Brejal está esperando, tem que estar sol ainda”. Estava divertido ali, uma horta é muito igual a outra, para que ir embora? Mas obedecemos Marcelo. Mais uma hora seguindo a pick-up vermelha no trajeto entre Teresópolis e Brejal, pólo que concentra grande parte da produção orgânica no estado. No vilarejo, trocamos de condução para uma Kombi que daria melhor conta do recado na estrada de terra.

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E subimos até chegar em uma pequena planície ensolarada. O Eldorado das couves-flores e dos brócolis. Comprovamos a desnecessidade de se cozinhar ingredientes fresquíssimos com nacos e mais nacos dessas delícias al dente. Foi difícil se concentrar, mas Marcelo desta vez nos laçou e liderou o tour. Explicou de que forma se dá o plantio e contou como surgiu o trabalho ali. Lavradores que não eram pagos de formas justas em outras propriedades e decidiram trabalhar por conta própria. Marcelo forneceu o conhecimento técnico, intermediou o uso da terra, integrou a produção ao seu modesto mas eficiente sistema de logística. De certa forma, começou a ficar claro, o Elemento Orgânico funciona como um coletivo, um agregador, como uma pequena-grande junta local dentro da Junta Local, onde muito mais que produtos, o conhecimento e o sentimento de solidariedade se entrelaçam e se unem para criar uma convivência mais justa e daí, como Marcelo diz, “surge a nossa afinidade”.

A noite chegou mas, já mais fáceis de sermos dobrados pelos pedidos de Marcelo, tivemos tempo para visitar o hub do Elemento Orgânico, um galpão onde chegam alguns produtos (muitos passam por um processamento para já chegarem lavados, descascados e cortados). Em torno do galpão, o luar ainda permitiu que plantássemos algumas ramas de batata-doce e conferíssemos abobrinhas em flor. Por último, conhecemos o sistema de reaproveitamento de águas do galpão, uma série de cascatas e decks que ajudam a filtrar a água.

Com barro entre as unhas e sacolas estufadas voltamos ao Rio. Contentes e um pouco mais sábios. Assim como os melhores professores, Marcelo apenas guia seu olhar de forma discreta e permite que cada um aprenda por conta própria. Na presença dele não nos damos conta de que estamos aprendendo, até que, de repente, num estalo, a lição fica clara. Como a lição veio ao final, Marcelo só apareceu no final do nosso vídeo que registra a visita. Mas a lição ficou. O propósito pode ser único, mas as pessoas e os grupos se moldam, se refazem de forma orgânica até se conformarem suavemente ao sistema mais correto.

Queremos agradecer a todos que trabalham com o Elemento Orgânico, principalmente Marcelo, que a essa altura, sumiu de vista, já está em algum lugar na estrada que sobe a serra.

Um produtor são muitos.

Crédito das fotos: Samuel Antonini