Texto da colaboradora Marcela Correia, produtora do K. Probióticos
Apesar da fermentação de alimentos ser uma tradição milenar existente nas mais diversas regiões e culturas do mundo, ela esteve um tanto ausente da cultura alimentícia globalizada nos últimos séculos, ou seja, desde quando delegamos à indústria a produção das nossas refeições. Pouco a pouco, nossas dispensas foram deixando de lado potes sem rótulo cheios de borbulhantes e vivos fermentos e as prateleiras encheram-se de latas e conservas vindas do supermercado. Começamos até mesmo a acreditar que bactérias são sempre patogênicas e causadoras de inúmeras enfermidades e, assim sendo, o ideal é sempre consumir alimentos pasteurizados e estéreis. Tudo em prol da segurança alimentar – segurança esta que a indústria parece nos garantir mais do que nós mesmos, em casa, preparando a nossa comida com nossas próprias mãos. Não tardaram a surgir estudos comprovando mortes de famílias inteiras por botulismo e outras doenças inesperadas apenas por consumirem um repolho fermentado em casa, ou alguma bebida caseira feita de uma receita de família, que por descuido fermentou também bactérias invasoras.
Além de mais higiênico, os industrializados passaram a ser ainda uma opção mais prática. Para que esperar dias e dias até um pepino virar um picles se podemos simplesmente ir ao supermercado mais próximo e comprar quantos potes de picles nosso bolso puder pagar e nosso estômago aguentar digerir? Mais rápido, mais limpo, sem riscos de vida, sem possibilidades de dar errado.
Paradoxalmente, ficamos cada vez mais a mercê de contágios – sorte que para isso a indústria também nos salvou, criando eficazes antibióticos, verdadeiros super-heróis que saem matando toda e qualquer bactéria do nosso organismo. Para precaver a contaminação, surgiram também os sabonetes antissépticos, que dizem matar 99% dos germes. A propaganda de TV mostra com eficácia todas as bactérias indo torneira abaixo e ficando apenas aquele um pontinho longínquo, representativo dos 1% de bactérias restantes nas sujas mãos dos nossos filhos. Mas nada disso parecia ser o suficiente e os espaços entre os tratamentos com antibióticos foram ficando cada vez menores.
O que parecemos ter esquecido em meio a pacotinhos, tetrapacks, latinhas e embalagens a vácuo foi que nós somos feitos de bactérias. Temos 10 trilhões de células humanas e 90 trilhões de células bacterianas, ou seja, sem uma vasta flora em pleno funcionamento simbiótico, somos quase nada. Diante de uma visível falência de um estilo de vida livre de qualquer organismo vivo e de qualquer alimento para os organismos vivos que vivem no nosso organismo (que confusão!), algumas pessoas passaram a atentar mais para a comida dos seus avós e bisavós. Retomaram seus potes e barris e iniciaram uma verdadeira contracultura da alimentação. Em tempos de fast-food, partiram numa jornada em que o tempo é o principal ingrediente.
A uma primeira vista, a fermentação natural parece magia. Deixamos um pouco de farinha e água num canto por uns dias e vòila: temos um levain pronto para fermentar uma leva de pães de casca crocante e miolo macio. Cobrimos legumes frescos com água e sal num pote fechado e, mágica! Eles não estragam e ainda ganham sabores complexos e inúmeros novos nutrientes. O crédito vai todo para esses incansáveis seres invisíveis, os microrganismos. Mas a ação de microrganismos sobre um alimento deixado de lado não seria a putrefação? Sim, ao fermentar qualquer alimento nos deparamos com o surpreendente fato de que a diferença entre a conservação láctea e o apodrecimento é só uma questão de escolher com quais bactérias você quer dialogar. Criamos um ambiente ótimo para o desenvolvimento das bactérias que nos interessam e pronto, deixamos de lado os riscos, as perdas e ganhamos em sabor e valor nutricional.
Mas ainda assim, paira no coração de muitos dos desbravadores do mundo das bactérias a cruel dúvida: como saber se estamos de fato cultivando as bactérias que fazem bem e não as que fazem mal? Como passamos tanto tempo afastados da fermentação natural, não possuímos mais aquele tino de saber quando uma batelada de legumes fermentados ou de kvass saiu do nosso controle e estragou. A fermentação aparenta ser, portanto, uma arte para especialistas; que para funcionar requer um vasto conhecimento e experiência que a maioria de nós está longe de ter. Contrário a esse tipo de pensamento está o ativista da fermentação natural, Sandor Ellix Katz, conhecido por seus diversos livros sobre o tema. Katz dedica-se a mostrar que a fermentação é algo acessível, corriqueira e muito mais simples do que pensamos à primeira vista. O que Katz nos mostra em seus livros é que qualquer um, em qualquer cozinha, é capaz de retomar essa tradição que quase caiu no ostracismo. Sem medos, sem frescuras.
A ideia é simples: fermentar os legumes que estiverem à mão, sem se prender a receitas elaboradas e técnicas avançadas. Você tem um repolho na geladeira prestes a passar? Faça um chucrute. É época de quiabo? Fermentemos esses quiabos para comê-los depois que passarem da estação. Afinal de contas, a fermentação é também uma das técnicas mais antigas de preservação de alimentos.
Mas e a exposição às bactérias ruins? Ao consumirmos alimentos ricos em microrganismos probióticos, melhoramos a nossa flora e com isso nos tornamos mais fortes contra as bactérias patogênicas. Nossa própria flora encarrega-se de criar um ambiente inóspito para bactérias invasoras. Com uma dieta rica em probióticos e prebióticos (alimentos consumidos pelas bactérias da nossa flora, que ajudam a fortalecê-la), criamos um sistema imunológico mais resistente. Combate-se bactéria com bactéria. Katz afirma: “A matança indiscriminada e contínua das bactérias dentro do nosso corpo, sobre ele e ao redor dele nos torna mais vulneráveis às infecções, e não o contrário. Devido à mutabilidade genética das bactérias, aquelas que são patogênicas estão desenvolvendo rapidamente uma resistência aos compostos antibacterianos mais comuns”. Ou seja, o uso constante de antibióticos e aquele inocente sabonete antisséptico favorece o desenvolvimento de superbactérias, aquelas que sobrevivem à bomba de assepsia, e ainda matam a nossa rica flora. Ficamos sem proteção e vulneráveis a bactérias patogênicas resistentes.
Além da questão da saúde, Katz acredita que esse resgate de técnicas ancestrais é também uma forma de independência da indústria alimentícia e de retorno à noção de comunidade. Para ele, a fermentação representa uma forma de cultivar e promover uma interação cuidadosa e simbiótica entre os seres, sejam eles bactérias, através do cultivo de colônias benéficas a nossa saúde, ou o seu vizinho, com quem você pode trocar um frasco de kimchi por uma garrafa de kefir.
O retorno à fermentação natural envolve, portanto, uma alternativa à industrialização e às formas de contato e troca pré-era industrial. Não precisa ser muito hippie nem morar numa comunidade autossustentável para fazer isso acontecer: nos singelos metros quadrados da sua cozinha é possível fazer a sua parte nessa revolução. Pode parecer que você estará fazendo um trabalho microscópico, mas munido de um livro do Katz na mão e de um fermento na outra, percebemos que é agindo no micro que somos capazes de mudar o macro.
Crédito da foto: Foodshot