Introdução por Thiago Nasser | Texto por Bruno Negrão, da Cozinha Comuna
Estreamos nesta edição a nova coluna bimestral Cozinha Comuna Cozinha (CCC). A história da Junta Local começa em parte na Comuna. Desde a primeira feira em seu mítico pátio, ingredientes e produtores da Junta figuram no cardápio da casa e nas “altas” experimentações de Tio Bruno e Tatiana Fernandes, líderes da Cozinha Comuna. No entanto, até hoje, salvo um épico texto envolvendo cogumelos, carne de vaca e serendipidade, as deliciosas pirações da Cozinha Comuna ficaram sem registro na nossa Revista. Um erro histórico que começamos a corrigir nesta edição que fala justamente da encruzilhada entre o global com o local.
A Cozinha da Comuna dá um copyleft (no jargão “tiobrunês”) no open source da comida global – vai do bahn mi com ingredientes hiperlocais ao pão de queijo com barriga de porco que redefine o tradicional, e as receitas da primeira da coluna não fogem da regra, fruto de uma viagem Ibérica (para ficar na geográfica). Antes da receita, fique com a voz da experiência de Tio Bruno Negrão, retraçando a coevolução Cozinha Comuna + Junta Local que culmina na receita que está presente no novo almoço da Comuna, feito quase 100% com ingredientes de produtores ajuntados.
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Faz tempo ensaiamos botar o pé de vez por essa área. Demoramos um tanto para, depois do nosso début, finalmente engatar uma coluna periódica na Revista da Junta, mas agora vai. Nossos propósitos são tão entrelaçados que o que vem a seguir é apenas um desfecho óbvio da relação entre Comuna e Junta Local.
Houve um momento, lá nos idos 2012, em que ousamos sonhar com um cardápio composto integralmente por produtores locais. Cada produto vem com nome, sobrenome, CEP. Entendemos a cozinha como um espaço pedagógico, uma forma privilegiada e saborosa de comunicar valores e compartilhar experiências, e sabíamos que nosso cardápio deveria representar isso, cedo ou tarde. Se cedo mostrou-se inviável, a Junta Local chegou para resolver esse problema. A dificuldade de acesso a pequenos produtores e a vontade de solidificar uma nova rede de consumo tornou-se o principal motivo para embarcar com os outros tios (Henrique e Thiago) nesse bonde chamado Junta Local. E daí tudo mudou. A Junta cresceu e deixou no seu rastro um trabalho ímpar de mapeamento e integração desses pequenos produtores a uma comunidade de consumidores engajados. E um terreno fértil para projetos que busquem explorar uma nova forma de relação com os produtores.
Desde o começo da Junta, a Comuna foi incorporando aos poucos produtores da rede e remodelamos todo nosso cardápio em busca de um relação mais equilibrada com os produtores. E agora, por fim, chegou a hora de um novo desafio: um almoço usando (quase que) exclusivamente produtos de produtores da Junta Local. Em novembro deste ano, às quintas e sextas-feiras (a princípio), começamos a apresentar dois pratos, além de duas entradas, feitos com ingredientes vindos diretamente de seus produtores favoritos.
Como não poderia ser diferente, e para seguir nossa cozinha copyleft, as receitas deste projeto serão a base da nossa coluna bimestral, “Cozinha Comuna Cozinha” (ou CCC).
Sem mais delongas, vamos à primeira delas.
Se me perguntarem, não há forma melhor de sentir saudade do que pela boca. Um sabor, um aroma é capaz de evocar aquela reminiscência de uma forma tão visceral, que por um segundo você se transporta para sua memória e a revive através de suas papilas gustativas. E essa foi nossa inspiração para esse prato. Eu e Tatiana (sócia e cozinheira-chefe da Comuna, minha companheira de cozinha e de vida) fizemos uma viagem pela Península Ibérica em que enchemos o diário (e a mala) de referências, e que pretendemos ao longo dos próximos meses transformar nostalgia em coisas gostosas para todos comerem. Começando por essa receita que é um de nossos pratos do almoço da Cozinha Comuna.
Muitos se enganam em reduzir a culinária espanhola a tapas e paella. Na verdade, se enganam em reduzir a culinária espanhola a uma coisa só. Um país que é uma colcha de retalhos de povos e costumes, mesmo com a construção e solidificação de uma unidade nacional (ou Estado Espanhol), ainda retêm suas singularidades (em muitos momentos de modo bem virulento). Dessa forma, a culinária espanhola é a grande junção da culinária galega, asturiana, basca, catalã, andaluz, manchega, valenciana e por aí vai. Umas mais similares outras mais distantes, mas todas compartilham a vivacidade e o prazer de comer. E sobretudo, o prazer de comer com os outros.
Se pensarmos na onipresente paella, é fácil ignorar o seu ingrediente principal: o arroz. O grão é coisa séria no sul da Espanha, sobretudo na comunidade valenciana e na Andaluzia, principais centros de produção de arroz espanhol. Legado da ocupação moura da região Ibérica, a Espanha é o segundo maior produtor de arroz da Europa, ficando atrás apenas da Itália. O arroz (ou al’riz) é algo tão presente que, além do museu do arroz, botecos em Valência ostentam sempre grandes panelas rasas de ferro com arroz a banda, paellas e outras mil e uma opções para comer por lá ou levar para casa.
E foi um pouco mais ao Sul, mais precisamente em Mallorca, que experimentamos um prato diferente, com um nome que poderia ter sido música do Molejo: o Arroz Meloso de Boletus. Basicamente, o prato consiste num arroz feito com um caldo a seu gosto (nesse caso um caldo de cogumelos boletus) e finalizado com queijo ou apenas manteiga. O segredo, similar ao risoto, é mexer constantemente (mas não sem parar) até o caldo incorporar o amido liberado pelo arroz. Por terras espanholas, o arroz bomba é a opção certa para esse prato, mas aqui achamos um substituto à altura. O arroz cateto tem uma textura firme e que aguenta um cozimento longo e constantes mexidas sem desfazer o grão, ao contrário do arroz branco, por exemplo. Quando testamos, tivemos certeza.
Arroz Meloso de Shimeji e Canastra da Lucinha
2 porções
280g arroz cateto Marfil Agroecológicos (2 xícaras)
1,5L caldo de legumes Blin (aproximadamente 6 xícaras)
60ml vinho branco (¼ xícara)
100g queijo Dariquim
80g manteiga Dariquim (4 colheres de sopa)
60g azeite de oliva (¼ xícara)
400g shimeji Cogumelos Umami (2 bandejas)
150g cebola Elemento Orgânico (1 xícara)
50g alho Elemento Orgânico (2 colheres de sopa)
40g de cebolinha picada Manacá (½ xícara)
sal e pimenta (pelo menos 2 colheres de chá para o arroz, e ½ colher de chá para o shimeji)
1. Comece preparando sua mise en place. Corte a cebola em cubinhos, pique o alho e separe as medidas certas de vinho, manteiga e queijo ralado. Separe a medida de arroz e faça o caldo seguindo as instruções do pacotinho. Quando tudo estiver separado, esquente uma panela (grande o suficiente para caber tudo e ainda conseguir mexer sem espirrar tudo para fora) e, em fogo médio, ponha a metade da manteiga para derreter.
2. Acrescente a cebola e refogue bem, em torno de 3 a 5 minutos. Acrescente o alho e refogue por mais 1 minuto. Acrescente o arroz e refogue por mais 3 minutos. Quando começar a dourar, acrescente o vinho e mexa bem, raspando qualquer fundo de panela que já tenha surgido.
3. Vinho evapora. Hora de acrescentar o caldo. Diminua o fogo e, aos poucos, verta o caldo quente (de 200 em 200ml, aproximadamente) e siga mexendo. Acrescente o sal e a pimenta e mexa mais. A medida que o caldo for evaporando, acrescente uma nova leva dele. Sempre mexendo. Uma boa proporção é mexer por 1 minuto a cada 3 minutos. Dessa forma, pode ir adiantando o resto do preparo do prato.
4. Enquanto o arroz cozinha e você vai mexendo, esquente uma frigideira com pouco óleo (caso tenha uma grelha, ainda melhor), tempere os shimejis inteiros com azeite, sal e pimenta e reserve. Quando a frigideira estiver BEM quente, acrescente os cogumelos inteiros. A ideia aqui é deixá-los firmes mas suculentos, por isso tome cuidado para não cozinhá-los demais. Quatro minutos de cada lado devem bastar. Quando ficar pronto, reserve e espere esfriar um pouco.
5. Enquanto isso, o arroz segue cozinhando e você mexendo. Quando sentir que o arroz está cozido (firme, porém já não agarra no dente – o tempo pode variar, mas o cozimento deve ficar de 50 minutos a 1h10) e o caldo BEM cremoso, ou melhor, meloso, é hora de finalizá-lo. Com uma tesoura, corte, próximo da base, as pétalas de shimeji. Reserve metade e acrescente a outra metade ao arroz e misture bem (reserve os talos do cogumelo). Despeje o queijo canastra ralado e misture. Finalize ajustando o sal e a pimenta e acrescente o restante da manteiga. O resultado final deve parecer um risoto com mais caldo, porém um caldo bem cremoso.
6. Finalize servindo o arroz numa tigela ou prato fundo, despejando mais pétalas de cogumelos por cima dele, cebolinha picada e no meio uma bolinha de queijo canastra ralado.
Peraí que tem mais! Por que não fazer umas belas croquetas com as sobras do cogumelo?
Croqueta de Shimeji
6-8 porções
500ml leite
50g cebola
180g farinha de trigo Marfil Agroecológicos
50g manteiga Dariquim
150g talos de shimeji Cogumelos Umami
8g sal
3g pimenta do reino em grãos
3g noz moscada
1. Basta picar as sobras de shimeji e refogá-las com um pouco de cebola.
2. Ferva um leite com cebola e noz moscada. Acrescente à cebola e aos cogumelos refogados, ao mesmo tempo, farinha e manteiga nas quantidades indicadas. Mexa bem até formar aquela pastinha também conhecida com roux, e acrescente o leite. Mexa tudo até incorporar e, em fogo baixo, reduza a mistura até engrossar (mais do que um molho bechamel, mas não muito consistente). Retire do fogo e reserve. Se precisar, ponha na geladeira.
3. Depois basta bolear ou fazer charutinho (escolha a forma que quiser), empanar (ovo e farinha panko com sal e pimenta) e congelar. Sua entrada do próximo jantar está garantida. Só fritar e servir quentinha.
Almoços na Comuna
Rua Sorocaba, 585 | quintas e sextas-feiras, das 12h às 15h
>> Este texto faz parte da edição #6 de 2017 da Revista da Junta Local <<
Crédito das fotos: Samuel Antonini