Texto por Thiago Nasser
Este é o relato de viagem que acompanha o sexto vídeo da nossa série Junta Local Vai, em que visitamos a Fazenda Marinha Vieiras da Ilha, em Ilha Grande, litoral sul fluminense. O vídeo abre com lindas tomadas subaquáticas no mar cristalino-turquesa onde crescem vieiras, ostras e mexilhões cultivados por Felipe Barbosa, Bruno Zirotti e Nuno de Azambuja, a trinca por trás do empreendimento. Nossa viagem havia se iniciado com um traslado de bote de Angra dos Reis até a Ilha Grande emoldurado por um pôr do sol cinemático. Eram exatamente estas as cenas mentalmente projetadas quando começamos a planejar a viagem. (Nos demos bem!)
Corte para alguns segundos depois, para quando começa a entrevista com os produtores: estamos numa clareira em frente a uma casa muito simples, que serve de base do Vieiras da Ilha. Os rapazes são entrevistados sentados num sofá velho e carcomido. A iluminação é insuficiente, o som é aquele que conseguimos captar. Somos atacados por mosquitos. Não há script. Junta Local Vai verité. Os entrevistadores e entrevistados se revezam entre o papo, a preparação de uma fogueira improvisada para um “churrasco” de vieiras e cervejas em copos descartáveis. A noite anterior havia sido das mais mal dormidas por conta das condições não perfeitamente salubres da casa onde nos hospedamos. (Por favor nos tirem dessa ilha!)
Mas tudo termina bem. Logo após a filmagem da entrevista, vamos limpar os mexilhões, cozinhá-los em vinho branco, e comer as vieiras assadas. Repletos e ébrios, vamos dormir sem nos importar com os mosquitos. De manhã daremos um mergulho capaz de fazer qualquer mortal esquecer dos problemas da vida e voltaremos à “fazenda marinha”, instalada a uma centena de metros da tranquila Praia da Longa.
Este contraste entre o cenário paradisíaco de cultivo de um ingrediente considerado sofisticado e a rusticidade do modo de produção é algo que vivemos na pele e também a marca do trabalho da Fazenda Marinha Vieiras da Ilha. A Praia da Longa é um recanto da ilha sem pousadas ou casas sofisticadas. Lá se encontra um vilarejo habitado por filhos de pescadores e daqueles que trabalhavam nas fábricas de sardinha da região. Porém, no dia seguinte, os produtos colhidos ali serão servidos, fresquíssimos, em refinados restaurantes em São Paulo e no Rio de Janeiro (e na Junta Local, ora). A fazenda, propriamente dita, consiste de algumas fileiras de boias que formam inusitadas raias no meio do mar. Sob cada boia, estão as velas, sequências de gaiolas ao longo de uma corda que se lança por 20 ou 30 metros em direção ao fundo do mar. Acompanhamos o trabalho de manejo, que consiste em fazer consertos nas lanternas e transferir as vieiras para outras lanternas vazias à medida que crescem e o espaço vai ficando apertado. As vieiras maiores, já dentro do padrão de comercialização, são transferidas para uma balsa “equipada” com uma banheira que um dia fez bonito na casa da avó de um dos meninos. Nossa equipe veste pés de patos e snorkels para acompanhar e filmar esse trabalho, que Felipe faz na base da apneia.
O cultivo de ostras, mexilhões e principalmente vieiras é recente em Ilha Grande. Por mais que sambaquis, imensas pilhas de conchas, inclusive da espécie de vieira encontrada no Brasil, nodipecten nodosus, e outros fósseis sejam encontrados em todo litoral brasileiro, sugerindo talvez intenso consumo, trata-se de um ingrediente que deixou poucos vestígios na culinária brasileira ou até mesmo caiçara. Seu cultivo de forma sistemática começa na década de 1990, quando o turismo substitui a pesca comercial, principalmente de sardinhas, como principal setor econômico da região. Turistas europeus, cujos paladares estão acostumados a vieiras e ostras, puxam a demanda em suas visitas à ilha. Alguns ex-pescadores ou aposentados que vieram da cidade começam algumas fazendas e vendem sua produção para turistas. Depois dos anos 2000, dentro de um programa de recuperação ambiental, a Petrobras investe num laboratório, o IED-BIG que produz “sementes” de vieiras que são distribuídas entre maricultores. Alguns se profissionalizam e a produção ganha comercial, passando a abastecer Rio de Janeiro e São Paulo. É nesse momento que se forma uma Associação de Maricultores da Baía de Ilha Grande, que ajuda na organização e fomento da produção. Mais recentemente, são jovens atraídos pelas perspectivas abertas pela produção de um produto valorizado num ambiente de trabalho inigualável. É o caso de Felipe e Bruno, formados em veterinária, e Nuno, biólogo, que decidiram empreender em contato com a natureza.
Mas esse começo não é fácil. O projeto foi criado em 2014 e caminhando pela ilha no tour indicado por Felipe, Bruno e Nuno, vemos o local onde eles acampavam e inicialmente processavam as vieiras, ostras e mexilhões. Eles estão no processo de adaptar uma construção para melhorar o processamento em terra dos mariscos, com estruturas para limpeza, refrigeração e embalagem. A balsa com a banheira ainda é usada, mas em alguns dias do mês eles utilizam uma balsa muito maior e sofisticada cedida pela AMBIG, o que permite processar com menos esforço um número maior de mariscos. Depois de dois anos, apesar de variações climáticas que afetam a produção, eles já incrementaram a produção e atendem um número maior de clientes e torcem para que a valorização do produto possa atrair mais jovens e empreendedores para a região.
Enquanto isso, a vida na Praia da Longa continua pacata. Na noite em que não comemos vieiras e mexilhões, comemos peixe frito num bar simples à beira da praia ouvindo as histórias de um pescador que nos bons tempos mergulhava e capturava garoupas de mais de 30kg. Tomara que na próxima visita possamos saborear mexilhões, vieiras e ostras e ouvir histórias de maricultor.
>> Este texto faz parte da edição #8 de 2018 da Revista da Junta Local <<
Crédito das fotos: Henrique Moraes e Samuel Antonini