Há pouco tempo foi lançado o segundo vídeo da série Junta Local Vai, focado na história de Rafael Brito e Ludmila Spíndola, criadores da The Slow Bakery. Nessa entrevista com nossa colaboradora Camila Félix entramos mais a fundo na sua história.

– De onde surgiu a paixão pelo pão e o seu fazer, e quando tudo isso começou?

(Rafa) A paixão pelo pão é constante, todo dia ela se renova. Mas o primeiro contato que eu tive com essa paixão foi durante o processo de aprendizagem. Era começo de 2014, a gente tinha acabado de finalizar as atividades de um Instituto de Comunicação que fundamos e eu precisava dar um rumo na vida. Voltar para a Publicidade seria um pesadelo. Foi quando decidi resgatar um sonho antigo, de ser padeiro. Engraçado que eu nunca tinha feito pão. Eu me apaixonei primeiro pelo fazer e depois pelo resultado.

Sempre fui um cara muito ligado às atividades manuais, sou marceneiro, adoro cozinhar, e o pão tem esse envolvimento físico que é alucinante. Uma coisa que eu sabia nessa minha transição de carreira é que eu queria trabalhar com algo mais manual. Na verdade, eu ganhei na loteria porque é muito melhor do que eu imaginava.

– Vocês falam que seguem a linha da escola californiana de fazer pães, como é esse processo? Qual é a diferença dessa escola para as outras?

(Lud) A escola californiana tem algumas bases que a gente gosta e valoriza muito. Primeiro, tem a questão do fermento natural. Para fazer pão, basta farinha, água, sal e tempo. Nada mais simples e rústico do que isso, e essa simplicidade encanta. O processo segue a linha da Tartine Bakery (considerada a padaria com o melhor pão de São Francisco) que também utiliza alta hidratação e longa fermentação, duas técnicas que conferem características super interessantes, tanto para o sabor quanto para a textura do pão. Enquanto nas escolas francesa e italiana a água corresponde a 65% do total de farinha, na californiana, passa de 80% fácil. Isso dá um pão muito macio, alveolado por dentro e com casquinha crocante. Ele descansa pelo menos dezoito horas, permitindo também ter sabores mais complexos, além de ser muito mais saudável.    

Além da técnica, a Califórnia tem uma abordagem muito interessante para ingredientes. O que vale para o estilo de vida também está na panificação. Então os pães têm muitas sementes e grãos germinados, ervas frescas, ingredientes orgânicos, uma explosão de sabores.  

– Como funciona o processo de fermentação da The Slow Bakery? Qual é a diferença da farinha italiana para as outras? O que muda no resultado final? (Simplificando, qual é a diferença entre um pão feito com essa farinha e o feito com uma farinha comum, por exemplo?)

(Rafa) Lógico que pegar uma técnica da Califórnia e aplicar no Brasil não é tão simples. Primeiro, pela qualidade da farinha. Para panificar com alta hidratação, a gente precisa de uma farinha muito forte, que é comum nos Estados Unidos e Canadá. Isso no Brasil é raro, raríssimo. Logo no começo do nosso processo, a gente teve a sorte de encontrar uma farinha italiana e que o importador é do Rio, facilitando também a logística. Fez e faz toda a diferença. Além de ter força suficiente para segurar a alta hidratação, ela também é uma farinha 100% natural, sem aditivos químicos, o que é muito importante para nós, para termos segurança do tipo de produto que estamos levando à mesa dos nossos clientes.

A nossa produção é toda baseada no fermento natural. O nosso tem 160 anos, foi presente de um amigo indiano. A gente cuida como ser vivo mesmo, precisa alimentar sempre, tem a temperatura que ele gosta de ficar…

– No release, vocês falam da cultura urbana carioca. De que forma essa cultura inspira a The Slow Bakery e por que o nome em inglês?

(Lud) A cultura urbana que inspira a gente é das novas relações e dos pontos de contato e encontros entre pessoas, ideias, produtos e projetos. É essa cultura urbana global que cria um caldo e subverte os modelos tradicionais da vida na cidade. O Rio tem vivido muito isso. É no que a The Slow Bakery acredita, na cidade onde soluções e novos caminhos brotem internamente, criando pontes com a própria urbe e também com o interior e o campo. Nesse sentido, a Junta Local dá forma a tudo o que sonhamos: esse Rio reinventado por tantos, daqui e de fora.

O nome veio em inglês por dois motivos. A inspiração californiana teve um peso nisso, mas o Slow foi determinante. Antes mesmo de existir projeto de pão, a gente já era muito conectado com o movimento Slow Food. Quando criamos a padaria, a gente queria que essa filosofia do movimento, que também é do nosso pão, estivesse impressa na nossa marca.

“Farinha, água, sal e tempo”, essa é a definição que a Ludmila deu no vídeo para a simplicidade do pão. Nessa receita, o ingrediente mais complexo é o tempo. É esse o ingrediente fundamental, tipo o “pulo do gato”? É por isso que quem manda na casa é o pão?

(Rafa) Na verdade, esse é o jeito que a humanidade faz pão há milhares de anos. O tempo para a fermentação do trigo sempre foi respeitado. Só no século XX que esse processo foi dando lugar à mecanização. Com esse tempo tão acelerado, o pão perdeu muito, em sabor e também no seu aspecto nutricional e de digestibilidade. Daí essa moda agora de evitar o glúten. Não é que ele faça mal pra todo mundo, é a forma acelerada como ele vem sendo usado que está totalmente equivocada.

O que a gente faz na The Slow Bakery é simplesmente respeitar o processo natural, do jeito que ele é. Dá trabalho? Muito. Mas a partir do momento em que isso está no DNA — como valor e não como processo —, é uma questão de estruturar a produção para funcionar desse jeito. Exige mais planejamento e a produção é em menor escala, mas é do jeito que a gente acredita e gosta de trabalhar.

– Já que estamos falando de tempo, como é um pão fora do tempo? (Para mais ou para menos)

(Rafa) Pão é um ajuste fino entre tempo, temperatura e quantidade de fermento. Se esse equilíbrio não é alcançado, o pão sofre, ou porque fermentou de menos ou demais. A gente sente na qualidade, ou falta dela. Vale dizer que esse ajuste é perseguido a cada fornada. O bonito de panificar é que o jogo nunca tá ganho, até porque a massa é um organismo vivo e às vezes muito temperamental.

– Como rolou o primeiro contato com a junta Local? Vocês tinham ideia da quantidade de gente que estava fazendo esse movimento também? Como foi encontrar essas pessoas?

(Rafa) Olha, essa história é engraçada. Na ânsia de trocar com outras pessoas, liguei para um padeiro de Brasília, o Dilson. Ele me indicou conversar com o Zé Pedro, grande padeiro da CB Pane, aqui no Rio, um cara que tinha estudado com ele em Nova York e poderia trocar ideia. Marcamos de fazer uma fornada e foi assim que conheci a Junta. Zé ia viajar, não ia poder participar da feira e falou pra eu ir lá levar uns pães que estava tudo certo. Eu e Lud chegamos na Casa da Glória sem a menor ideia do que iríamos encontrar.

(Rafa e Lud) Na verdade, a gente não sabia que aquele dia iria transformar todos os nossos outros e a nossa vida. Encontrar a Junta Local foi encontrar a própria turma. Se a gente estava num movimento pequeno de fazer os nossos pães no Joá, quietinhos, a gente se uniu a uma galera que potencializou e deu muito mais gás e visibilidade para tudo. É emocionante pensar sobre isso e ver que nesse quase ano como ajuntados ganhamos tantos amigos e uma rede incrível de pessoas que sonham e vivem o mesmo sonho que a gente. Não dá nem para dizer como estaríamos e como seria a The Slow Bakery sem a Junta Local.

Na verdade, a Junta tem mais do que cumprido o seu papel como comunidade de aproximar produtores dos interessados no alimento. É pura potência, propósito, realização e criatividade.

– O Rafael é publicitário e isso explica o cuidado com a identidade visual, fotos, site e mídias sociais. É difícil ver um pequeno produtor com todos esses elementos alinhados tão bem! Que conselho você dá pra quem está começando e não tem essa visão especializada?

Como nós dois somos de comunicação e tivemos agência de conteúdo por bastante tempo, dar forma ao DNA da The Slow Bakery foi muito natural e prazeroso. É algo que a gente curte muito fazer.

Para os pequenos produtores que estão começando, algumas dicas:

  1. Olhar para dentro é o grande passo para estruturar uma marca. Ela se cria com essência, com propósito. Liste os valores em que você acredita, enumere os que você gostaria de ter no seu produto e depois enumere aqueles que você gostaria de passar para as pessoas. Esse é o norte que vai direcionar qualquer trabalho desenvolvido para a sua marca, até mesmo na hora de passar as informações ao parceiro ou fornecedor que vai te ajudar nesse processo.
  2. Lembre-se de que é possível estabelecer parcerias mais criativas do que simplesmente a troca de trabalho pelo dinheiro.
  3. Tem muita plataforma gratuita de e-commerce e desenvolvimento de site. O nosso foi feito pelo Wix de um jeito bem intuitivo. Não é difícil.
  4. Beleza é fundamental. Busque referências de outros negócios parecidos com o seu. Vai inspirar e dar um norte estético que, somado a todo o seu trabalho de essência, permitirá criar uma linguagem própria para a comunicação.
  5. Invista na presença e no relacionamento nas mídias sociais, lembrando que as pessoas buscam diálogo e ponto de contato. Ser menos comercial e mais inspirador pode fazer a diferença.

– Como a The Slow Bakery vê o futuro da alimentação consciente?

Estamos vivendo um retorno ao que é essencial e natural. Isso vem mudando o panorama da alimentação no Brasil, apesar das forças contrárias da indústria alimentícia. Para que a alimentação limpa, justa e de qualidade ganhe força, é fundamental que as pessoas tenham cada vez mais informação, que a gente invista no diálogo e no papel de criação dessas comunidades, como a Junta Local. O trabalho coletivo de cada um de nós sustentando essa rede possibilita que as vozes, ações e produtos ganhem escala e cheguem cada vez mais longe.

Não é um trabalho simples, já que estamos falando de interesses econômicos poderosos e globais, mas a gente aqui acredita no poder de transformação local da nossa realidade. O que está acontecendo no Rio, com a Junta, o Comida da Gente, as feiras orgânicas, entre outras iniciativas, é um exemplo dessa potência. Há três anos, nada disso existia.