Editorial por Thiago Nasser | Texto por Sandra Mendes, da SM Drinks

Nesta edição da Revista estamos explorando as nuances das mobilizações do passado dentro de uma nova cultura da comida. Se o retrô é uma das avenidas mais movimentadas de comunicação entre o passado e o futuro, a coquetelaria é certamente um dos veículos que mais transitam nela. Grande parte dos clássicos da coquetelaria foi criada durante a Era da Proibição e não é a toa que a estética do speakeasy virou clichê. Mas existem outros momentos históricos, sempre tendo como aliados ingredientes e destilados locais, que geram drinques definitivos. O Negroni é um belo exemplo. Reza a lenda que, encostado num balcão de Florença, um tal Conde Negroni quis dar uma fortalecida no seu Americano, um drinque feito tradicionalmente com gim, bitter e soda. O drink não só levou uma batizada de gim, mas foi italianado com o acréscimo de uma casca de laranja. Assim nasceu o Negroni que hoje consta no cardápio de dez entre dez bares bacanudos da cidade.

Ao mesmo tempo, o Negroni também é um belo exemplo de como somos um pouco trouxas, pois, mais atentos à moda que à tradição como somos, acabamos macaqueando a gringa. Se você quer apreciar um drinque encorpado e amargo feito com o mais tradicional ingrediente local – a cachaça – e que custa bem menos, conheça o Rabo de Galo. Para contar sua história e apresentar uma receita, chamamos a nossa musa e referência na área, Sandra Mendes, presença constante nas feiras da Junta Local, sempre disposta a incorporar produtos de barracas vizinhas e a dar verdadeiras aulas sobre coquetelaria. Mais do que declarar seu amor ao Rabo de Galo, um verdadeiro drink brasileiro, Sandra nos faz pegar a Via Dutra do passado até uma não tão remota São Paulo dos anos 1980. O passado não precisa ser um balcão de mármore na Via de Tornabuoni. Pode muito bem ser o balcão de uma padaria trash na cidade da garoa.

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Nos idos dos anos 80, eu era apenas uma garotinha punk. Os bares colados às boates alternativas de rock eram chamados por nós punks de “botes” (diminutivo carinhoso para botecos), e nos ofereciam cerveja de garrafa grande, vinho barato e algumas preciosidades da coquetelaria brasileira: Maria Mole, Pau na Coxa, Bombeirinho, Meia de Seda e o mais popular deles: o Rabo de Galo, que está de volta deliciando os amantes do também endeusado Negroni. Sim, o amargo foi redescoberto e nos trouxe de volta o brasileiríssimo Rabo de Galo, com muito orgulho! Rabo de Galo, ou Traçado, como é chamado no Rio de Janeiro, é o coquetel mais vendido no Brasil!

Vamos à história. Nos anos 50, a fábrica da Cinzano chegou a São Paulo de olho na comunidade italiana que se concentrava no bairro do Bixiga. Porém, a nossa branquinha – a cachaça – era quem mandava nos balcões brasileiros, e logo a empresa começou a estimular a combinação do seu vermute com a preferência nacional. Nasceu um clássico! Com sabor encorpado e amargor intenso e persistente, ele lembra clássicos internacionais como o Negroni.

A receita é apenas um guia, pois existem variações conforme a região do país. Eu prefiro o meio a meio, uma parte de cachaça e uma parte de vermute, mas você pode ir testando as proporções até chegar ao seu paladar. Também não existe uma técnica fixa de preparo: você pode misturar no mixing glass para gelar, ou montar no próprio copo que vai servir, como eu bebia naquela época, no balcão da extinta padaria da Praça Roosevelt, em São Paulo.

Rabo de Galo

1. Escolha a sua cachaça preferida, pois temos muitos tipos e de diferentes qualidades, o que interfere bastante no sabor do seu coquetel. De uma forma geral, a cachaça branca, sem características de madeira, intensifica a potência alcoólica. A cachaça envelhecida, com características de madeira (umburana, bálsamo, carvalho, amendoim etc.) deixa o coquetel mais suave, e mais complexo de sabor, com mais camadas.

2. O vermute é uma bebida à base de vinho infusionado com diversos botânicos, com forte sabor amargo. Existem muitas marcas, escolha a sua: Cinzano, a mais tradicional de todas, Martini Rosso, Cynar com alcachofra, Carpano Classico, e a italiana Punt e Mes mais amarga e com especiarias são as mais usadas.

3. Os bitters são uma infusão amarga de raízes, folhas, frutos ou especiarias maceradas com bebida alcoólica neutra. São aromáticos como a Angostura, que dão maior complexidade ao drink. Eles são opcionais, mas eu gosto de usar um de laranja, apenas 2 dashes para substituir o cítrico de uma fruta.

4. Como guarnição, utilize um zest de limão ou laranja para perfumar, apertando-o sobre o drink para deixar sair o óleo essencial da casca.

E para quem não acredita na minha história, deixo essa foto da época, com minha famosa Crista de Galo. E #godsaverabodegalo.

>> Este texto faz parte da edição #4 de 2017 da Revista da Junta Local <<
Crédito das fotos: Samuel Antonini (com exceção da última, que pertence ao acervo da Sandra)