Texto por Ludmila Espíndola, da The Slow Bakery
Nem bem o sol tinha nascido e o celular já contava quatro mensagens e três chamadas não atendidas. Pablo e Marilena, a dupla de padeiros que abre a Slow todos os dias, estava apreensiva. Ninguém sabia ainda o motivo, mas algo inédito acontecia naquela manhã.
O nosso levain de 155 anos, sempre tão vigoroso e potente, não tinha crescido nem a metade do habitual. Contando que todas as nossas fornadas dependem 100% do fermento, esse selvagem, a semana ameaçava começar na vibe terror e pânico, com o cenário se desenhando para não conseguirmos produzir absolutamente nada naquela terça-feira.
O que se seguiu ali foram doses de adrenalina e comprometimento para salvar o levain e a fornada. Tudo muito diferente do ambiente controlado e automatizado da maior parte das padarias modernas. Longe da escala humana, elas trabalham com misturas, glúten extra e máquinas de bolear, numa coreografia mecanizada e industrial, onde não há espaço para as mãos, a massa e a magia do tempo. Onde sobra controle e falta alma.
Em padaria, como na vida, felizmente nem sempre sinal de fumaça é fogo. O desgastante dia acabou bem melhor do que começou. Parte do fermento preguiçoso foi recuperado e ainda ganhamos uma isca do nosso próprio levain. Este havíamos doado a um amigo há cerca de um ano, dando mais uma amostra da generosidade e importância das redes, afinal o nosso fermento está espalhado por meio Rio de Janeiro.
Embora em quantidade menor do que a habitual, garantimos os pães do dia seguinte e reforçamos uma certeza que surgiu com a gente antes mesmo de abrirmos a Slow. Frente aos processos mecânicos e insossos, o artesanal não significa apenas um caminho de como produzir, mas sim um norte para o futuro da alimentação.
De onde vem a força do alimento
Parece louco falar disso poucos dias depois de quase ter tido uma fornada inteira perdida pela instabilidade do fermento, mas é exatamente nesse frágil equilíbrio entre a ação humana, os ingredientes e a força da natureza que reside a potência do alimento. Basta olharmos para o fogo, a brasa, o crescimento de uma planta ou a fermentação de um vinho, pão ou kombuchá. É a partir da interação de elementos do nosso Universo com o trabalho vigilante do homem e a ação do tempo que faz surgir nutrição, sabor e deleite.
Não nos enganemos. Tudo de mais incrível foi criado dessa forma. Desde que o homem começou com essa mania de ganhar escala industrial a partir das máquinas e do controle, a alimentação deixou de ter tons vibrantes para ficar numa escala cinza e insossa. Alguém aí se lembra do gosto de uma cerveja industrial? Ou mesmo de um pão de forma desses de mercado?
Artesanal forte e potente, por que não?
É comum que o artesanal seja visto como algo pequeno, frágil e inacessível para a maioria, incapaz de suprir parte das demandas do mercado. O grande pulo do gato e que poucos querem discutir é a possibilidade de ter escala e processo artesanal ao mesmo tempo. Claro que de forma pé no chão e sem querer ganhar continentes, mas sim alimentar pessoas.
A nossa experiência na Slow está aí para questionar essa tese. Desde 2014, quando começamos a fazer pão, até hoje, a rotina na padaria é a mesma. Consiste em alimentar o fermento no primeiro dia, bater massa e colocar a fornada para descansar no segundo e só no terceiro dia assar os pães.
Fazíamos assim com uma produção de oitenta quilos por mês, fazemos do mesmo jeito hoje, quando estamos atingindo um volume mensal de quatro toneladas. Detalhe, todos os pães boleados a mão por uma equipe de quatro pessoas. Trabalham na padaria Pablo, Marilena e Marcelo, formados ali e coordenados pelo Rafa, o cara apaixonado e obcecado que é o meu sócio e parceiro de vida, responsável por cada sourdough que sai da Slow.
Na São João Batista, do ladinho do cemitério, todos os dias, quebramos o discurso industrial que insiste em deixar as grandes corporações no comando do que vai para a mesa de todos nós. Nascemos na Junta e o nosso caminho não poderia ser diferente.
Nesses três anos de existência, a Junta tem sido uma das grandes inovações brasileiras, criando uma rede de fortalecimento de produtores e conexão direta com o consumidor. A cada feira, Sacola ou negócio que surge, uma revolução acontece. É importante que a gente não perca isso de foco e saiba com que força estamos lutando. Afinal, a quem interessa manter o artesanal frágil e pequeno?
>> Este texto faz parte da edição #4 de 2017 da Revista da Junta Local <<
Crédito das fotos: Samuel Antonini