Inauguramos aqui a nova coluna de receitas da Revista, “Zé Come”, escrita por José Pedro Fonseca, recluso padeiro e eminência parda da CB Pane – preconizador do “atávico moderno” no resgate da fermentação natural de pães na cidade – e cozinheiro epônimo da popular Maison do Zé, restaurante e panificadora que prova que gastronomia se faz em qualquer lugar mesmo, até na sobreloja do Terminal Menezes Côrtes no Centro. Os pães e criações do Zé deixaram sua marca nos primórdios da Junta Local, com a CB Pane, e continuam presentes nas feiras na barraca da Maison do Zé. A marca dos dois empreendimentos é um foco unívoco na qualidade da comida. Ambientação, decoração, adesão a tendências são elementos secundários, se não nulos, no trabalho de Zé e seus parceiros Tito e Gabriel, um despojamento que não se vê em outro estabelecimento da cidade que tenha qualquer pretensão culinária e, para garantir, a reveste de afetações gourmet ou hipster.

As (não) interações com Zé nas feiras ou no restaurante são lendárias. Ora, seu pão ou sua comida falam por si, é bem possível que ele esteja mais interessado em terminar o calhamaço que está lendo do que responder se o pão é integral ou sem glúten. O transeunte da feira ou cliente simplesmente não é sua primeira preocupação. Mas não se engane. Por trás do personagem um tanto misantropo se esconde um ser comunicativo e generoso, principalmente quando o objeto é a comida. Faça a pergunta certa, demonstre algum traquejo que Zé se abrirá, falará com desenvoltura e de forma bem-humorada sobre qualquer assunto de comida e, talvez, a coisa evolua a partir daí. Sem fanfarra ou holofotes, tem propagado conhecimento sobre pão, cozinha e ética de trabalho, seja através de cursos, exemplo ou simplesmente não dando a mínima.

Convidamos Zé a fazer uma receita com o feijão recém-colhido do Sítio Córrego Alto, presente constante na Sacola Virtual neste inverno. Ele a princípio torceu o nariz, no entanto essa resistência rendeu exatamente o que pretendemos com essa coluna: com conhecimento técnico e bagagem cultural, mostrar um caminho totalmente diferente para um ingrediente considerado banal.

Para a produção das fotos por Samuel Antonini, parte da equipe da Junta Local se reuniu num domingo de manhã no Ateliê das Ideias. Acompanhamos o preparo da receita, fotos e almoçamos. Se Zé se comunica através da comida, nos sentimos certamente afagados, apesar de todo mise-en-scène de contragosto. E certamente continuaremos importunando-o para ver se ele come.

………………..

Texto por José Pedro Fonseca, da Maison do Zé

Quando me foi dada a tarefa de criar uma receita com feijão, confesso que não fiquei lá muito entusiasmado. Enquanto ruminava possibilidades, desvendei os motivos da minha frustração. Em primeiro lugar, não cresci numa casa onde feijão era algo indispensável em todas as refeições e portanto não tenho memórias calorosas desta leguminosa. O outro motivo é de que sendo brasileiro, talvez mais especificamente do Centro-Oeste/Sudeste, na minha cabeça só existia uma receita de feijão – cozinhar em água e acabou.

Eventualmente, depois que algumas tentativas de criar algo novo não funcionaram, resolvi deixar meus bloqueios me guiarem. Outros podem ter uma afeição quase sagrada pelo feijão, mas não eu, e portanto estou livre para levá-lo para caminhos mais profanos. E, se receitas nacionais não me interessavam, por que não abrir o leque para o mundo inteiro?

Na Maison do Zé, de vez em quando fazemos algumas pastas de curry tailandesas. Essas pastas são incrivelmente aromáticas e complexas, e qualquer coisa cozida nelas – frango, vegetais, cogumelos, naco de havaianas – ficam foda. Feijão não seria diferente.

Tendo achado uma boa combinação, pensei que o trabalho tinha terminado, mas ainda tinha um leve receio em juntar algo tão familiar com algo tão exótico. Afinal, tratando-se de uma quase heresia, tão importante quanto executar bem o prato, é convencer de que ele vale ser provado.

Foi aí que comecei a montar uma defesa para aqueles que se sentiriam, digamos, ofendidos, com tamanho sacrilégio e reparei que talvez este casamento não era tão insólito assim. Todos os ingredientes, por exemplo, são facilmente encontrados em feiras ou mercados e há um parentesco, nem tão distante, com o feijão.

Alho, cebola e louro, claro, são frequentemente utilizados no começo do cozimento e pimenta e coentro na finalização. O cominho, apesar de não ser muito comum aqui, é combinado com feijão na América Latina inteira, inclusive no nordeste do Brasil. Quanto ao limão, vejamos a feijoada que vem acompanhada não somente da laranja, mas também da caipirinha. Ou seja, cítricos com feijão é algo que todos já experimentaram, e o capim-limão ajuda a intensificar este aroma.

Agora vamos aos ingredientes menos comuns. Açúcar pode causar um choque, mas é uma adição (na forma de melado) comum na Inglaterra e nordeste dos Estados Unidos. O camarão é um acompanhamento essencial do acarajé, que é simplesmente um bolo de feijão frito. O nam pla ou shoyu dão um sabor mais “carnudo” ao prato, assim como um pedaço de bacon faria. Quanto ao leite de coco, admito que não achei uma razão lógica para juntá-lo com o feijão, mas depois de provado o prato, a razão gustativa foi mais do que suficiente.

Esta receita provavelmente não vai substituir o almoço rotineiro de ninguém, mas essa nem é sua intenção. Ela apenas tenta mostrar que o velho arroz com feijão, se permitido liberdade, pode surpreender de vez em quando.

Feijão Herético
6-8 porções

12 pimentas vermelhas da vossa preferência (aproximadamente 50g)
1 molho de coentro, mais raízes
12 dentes de alho, descascados
80g gengibre, aproximadamente um pedaço de 8cm
2 cebolas pequenas
3 capim-limão (com o caule inteiro)
½ colher de chá de semente de coentro
½ colher de chá de cominho
½ colher de sopa de pasta de camarão (ou 2 colheres de sopa de camarão seco hidratados em água por alguns minutos)
500ml leite de coco
500g feijão vermelho
2 folhas de louro
50-100ml nam pla ou shoyu
açúcar
1-2 limões
1kg barriga de porco, sem pele
arroz

1. Feijão: Deixe o feijão de molho no dia anterior em água levemente salgada. Para os que têm uma balança, o sal seria 1% do peso do feijão mais a água necessária para cobri-lo.

2. Cozinhe o feijão com o mínimo de água possível e quando necessário reponha para que ele fique submerso, cozinhe por aproximadamente 2h.

3. Pasta: coloque o cominho e coentro numa frigideira no fogo médio. Toste até sentir o aroma ficar mais forte e tire do fogo. Moa num pilão ou num moedor de café. Reserve.

4. Corte a raiz do coentro, pimentas, alho, e cebolas em pedaços e reserve. Quanto ao capim-limão, você quer utilizar a parte mais tenra. Corte fora as folhas e retire algumas camadas do caule. Se o capim-limão estiver ainda com a raiz intacta, corte alguns centímetros da parte de baixo. Se essas instruções parecerem complicadas – e elas o são – assista a este vídeo.

5. Pilão: se você tiver um grande, pesado e de pedra, além de fôlego, você pode utilizá-lo. Comece com a raiz de coentro, amasse até ficar pastosa, depois em etapas adicione o capim-limão, gengibre, alho, cebola, camarão e especiarias. Processador: coloque todos os ingredientes e processe até virar uma pasta. Ela dura alguns dias na geladeira e muito tempo congelada.

6. Barriga: misture partes iguais de sal e açúcar, esfregue na barriga e asse a 120º C (ou no fogo mais baixo do seu forno) num tabuleiro com um pouco de água até ficar macia, por aproximadamente 2h. Retire, aumente a temperatura para o máximo e deixe assim por uns 15 minutos e depois coloque de volta a barriga até dourar. Guarde na geladeira (fica mais fácil de fatiar) ou deixe o forno no mínimo enquanto você continua com os próximos passos.

7. Frite a pasta com algumas colheres de sopa de óleo por alguns minutos, sempre mexendo.

8. Adicione o leite de coco e, se quiser, algumas folhas do capim limão. Cozinhe em fogo baixo por uns 20 minutos.

9. Ajuste o tempero. Você tem à disposição nam pla, sal, açúcar e limão. Vá adicionando pouco a pouco de cada um até conseguir um caldo salgado, levemente doce e levemente ácido.

10. Escorra o feijão e reserve o líquido. Junte o feijão com leite de coco e adicione aproximadamente 250ml de líquido. Sirva com arroz, coentro, barriga e fatias de limão.

Crédito das fotos: Samuel Antonini