Quatro e quinze da manhã. O forno ainda está morno quando Ruben chega no subsolo de uma casa no Jardim Botânico para começar a trabalhar nos seus pães: as “pré-massas” estão prontas, falta bolear, esperar mais um pouco pela última fermentada e, por fim, assar. Com o forno já reaquecido, a primeira fornada começa às 06h30.

Lá pelas 07h chega Laura. Apesar de cedo, ela está desperta e lépida, seus movimentos são quase elétricos. Os pães dela foram assados na noite anterior, no mesmo forno que chegou morno para Ruben. A essa altura os pães da Laura, cubos fofinhos de crosta lisa e dourada perfilados em prateleiras de aramado, já esfriaram e estão prontos para serem embalados e divididos em caixas de plástico grandes de acordo com seu destino final.

Daqui a pouco, chega um bocejante e espreguiçante João. Seu estado de consciência é duvidoso, ainda entre o sonâmbulo e o semi-alerta. A segunda fornada de Ruben já saiu, e os pães de João, que passam por uma fermentação mais longa, são os últimos a entrarem no forno, fechando o turno nesta que é – salvo a existência de uma ainda mais escondida e underground que esta – a primeira padaria coletiva do Rio de Janeiro.

A história de cada um destes que se destacam na nova geração de padeiros da cidade e o aroma de pão fresco que se sente de longe seriam justificativa suficiente para uma visita da Junta Local. No entanto, no cenário de dificuldades e desafios do pequeno produtor, nos interessava registrar particularmente como surgiu essa forma de colaboração e cooperação, uma das principais armas do pequeno produtor para driblar toda adversidade. Há muito lenga-lenga sobre economia colaborativa e cooperativa por aí, que rapidamente vira seminário, vídeo no YouTube, TED, edital etc. Mas nada melhor que observar um exemplo prático de como a superação de limites individuais se resolvem no coletivo.

Passemos à história.

Cada um nessa trinca de novos padeiros chegou na Junta Local em momentos distintos. Na ordem: primeiro Laura Toledo, nom de guerre* JDD – Jardim das Delícias, depois João Pessanha, o Joãozinho da Araucária Pães Artesanais, e logo depois Ruben Luckert Tavares da Dufte.

Laura Toledo
Possui formação em gastronomia e um currículo que conta com passagens pelos restaurantes Brasserie Rosário, Roberta Sudbrack, Mirazur (Menton, França) e Laguiole. Os pães do Jardim das Delícias, no entanto, têm menos a ver com técnicas apuradas de panificação (embora elas sejam utilizadas) do que com a relação afetiva de Laura com o sítio da família, onde ela colhe não apenas as mandiocas e inhames que entram na sua receita, mas também memórias tenras da infância. “O próprio modo de fazer o pão é bem caseiro”, diz Laura. Ele foi desenvolvido pela mãe a partir da receita de uma nutricionista, dessas que se faz um recorte de revista e guarda entre as folhas de um caderno de culinária. O resultado é único: um pão de forma que une personalidade e leveza, uma massa delicada mas com a consistência das raízes que entram em sua composição. Laura produz ainda ghee – belo par para seu pão – e brotos em seu sítio. Quando perguntada qual seu trabalho, se questiona: “sou padeira?”.

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Sua rotina é dividida entre o sítio e a cidade. De segunda a quarta ela está no sítio, em São José do Vale do Rio Preto, perto de Teresópolis. De quinta a domingo ela está no Rio, assando seus pães, fazendo entregas e participando de feiras (é preciso lembrar que o pequeno produtor joga em todas as posições?). O forno de casa já não dava mais conta da produção e Laura, até pouco tempo atrás, utilizava o forno de um café no Jardim Botânico, nos momentos ociosos da cozinha – geralmente em horários ingratos até para padeiros. E como ela diz, se sentia uma “invasora” na cozinha. Na padaria coletiva agora ela tem seu próprio horário e, mais que isso, a companhia de seus pares.

João Pessanha
Criador da Araucária Pães Artesanais, já fez um pouquinho de tudo. Se formou em publicidade e trabalhou em agência de marketing. Tinha um gosto por cuidar de plantas, e foi assim que começou uma pequena coleção de orquídeas. De quebra, é baterista da banda carioca Baleia. Entre baquetas e bromélias, foi parar como voluntário do orquidário do Jardim Botânico cuidando das flores e então resolveu apostar na jardinagem e no paisagismo. Numa viagem à França, ficou hospedado na região de Cognac na casa de um simpático casal, Marie e Norbert, que trabalhavam com paisagismo. Acontece que além de plantas, o casal tinha uma pequena padaria na propriedade. E foi assim que João começou a se interessar por pães.

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De volta ao Rio, decidiu entrar no mundo do pão, colhendo dicas com o Rafael Brito da The Slow Bakery e José Pedro Fonseca da CB Pane e Maison do Zé. Desde que entrou na Junta Local,  Joãozinho já evoluiu bastante com sua produção. Na Sacola Virtual já chegaram pães, digamos, bem passados e de incríveis formatos, como a baguete em formato de bengala, o pão sourdough grávido e outros que já entraram para o folclore. Mas sossegado do jeito que é, foi aos poucos e sem stress se aprimorando e hoje fornece seu produto para uma porção de novos cafés e restaurantes que abraçaram a geração de neopadeiros da cidade. Se divide entre a baqueta e a baguete, com Marie e Norbert sorrindo para ele do quadro que fica pendurado na parede.

Ruben Luckert Tavares
Veio de Baden-Wüttenberg, região dotada de uma das culinárias mais notáveis da Alemanha. Como estudante de design industrial, chegou ao Brasil para fazer um intercâmbio na ESDI, conheceu Roberta, se apaixonou e decidiu morar aqui. Nunca havia feito um pão na vida, mas começou a fazê-lo em casa, pois sentia falta de um bom brot.

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Os vizinhos e amigos tomaram conhecimento e logo vieram os pedidos e a criação da Dufte, especializada em pães com fermentação natural com um forte sotaque da Alemanha, que possui uma tradição própria de panificação. No começo eram fornadas de dois pães de cada vez. Se os pães eram poucos, o aprendizado era muito. Com erros e acertos, Ruben foi pegando confiança e começou a receber pedidos. As entregas eram feitas de bicicleta e nas feiras da Junta Local Ruben atendia com a roupa de ciclista do corpo, mais uma cena inusitada na Junta Local. Depois de uma passagem pela Alemanha para trabalhar por alguns dias em algumas padarias “sinistras”, como ele diz, já bem aclimatado ao Brasil, a coisa ficou séria. A Dufte tomou corpo e hoje suas fornadas de Weizenbrot, Bauernbrot e Roggenbrot (além de tortas doces fantásticas) são muito maiores e Ruben está fazendo a transição para ter um produto 100% orgânico (ele já encontrou fornecedores orgânicos de centeio e farinha integral).

Essa é história individual dos padeiros. Está na hora delas se misturarem e fermentarem.

O ofício do padeiro é solitário. Acordar de madrugada, assar com o sol raiando não é para qualquer um. E como nem sempre todos os padeiros estão presentes nas feiras da Junta Local, eles continuam solitários. Mas em algum momento eles se encontram, geralmente no pós-feira, que para produtores costuma ser momento de intensa troca de produtos e conhecimento, entre uma cerveja e outra. E o encontro de padeiros é sempre único, com seu linguajar característico sobre farinhas, fornos e hidratação.

Foi assim que Laura conheceu João e conversa vai, conversa vem soube que ele queria comprar um forno para a padaria que estava montando no subsolo de sua casa. Como o leitor já deve ter percebido a essa altura, o forno é uma peça chave para a transição do padeiro diletante ao pequeno produtor artesanal. Um bom pão depende de temperaturas mais altas e de vapores, coisas que o forno doméstico não proporciona.

Joãozinho já havia comprado um forno de segunda mão e adaptado um espaço ocioso da casa para fazer sua padaria. Recebeu de doação a masseira da The Slow Bakery, comprou uma mesa de inox (nada como uma mesa de inox na cozinha para dizer que a coisa é para valer, já percebeu?) e outros equipamentos. Precisava transportar o forno que ficava na varanda para um local mais adequado, o subsolo da sua casa que era habitado pelos bricabraques do pai, também músico, e outros amontoados. Além disso, seu forno, comprado baratinho, funcionava com um vidro improvisado na porta, que, apesar de “sob medida”, deixava uma fresta para o ar entrar (o que talvez explica os formatos inusitados de seus pães). Um segundo aparelho não cairia mal para sua produção em franca expansão. Numa conversa, Laura mencionou um forno à venda. Resolveram comprá-lo juntos. E onde ele ficaria? Claro, no subsolo da casa de João, onde Laura passaria a fazer seus pães. São dois andares de fornos modulares e alguns fornos maiores na padaria. Pouco tempo depois, num bate-papo após uma feira na Rua do Rosário, João conheceu Ruben e o convidou para fazer pão na casa do Jardim Botânico.

Assim, sem nenhum plano de negócios ou nome bacana que envolvesse o prefixo “co”, sem tijolos e tubulação elétricas aparentes, azulejos brancos de metrô, suculentas e cactos, começou a padaria coletiva. O acaso, a necessidade e a vontade foram o fermento da empreitada. A dinâmica é simples: o tempo é dividido em turnos. João cobra um aluguel camarada pelo local, o dinheiro deste aluguel é usado para fazer melhorias no espaço; as contas de luz são divididas de acordo com o tempo de utilização de forno. Ruben, que é meio faz-tudo, desenhou e construiu suportes para equipamentos da padaria e pagou parte do “aluguel” em mão-de-obra, ajudando na construção de um deck que dá para o quintal da casa. Os padeiros fazem compras coletivas de insumos que todos usam, se ajudam nas entregas e estão buscando dinâmicas de cooperação para poderem estar presentes em todas as feiras da Junta Local.

Com isso, todos puderam aumentar sua produção sem abrir mão do processo artesanal e subir um ponto mais alto na tênue curva entre a necessidade de encontrar a sustentabilidade e manter o DNA de pequeno produtor. Laura, João e Ruben trocam dicas e comentam sobre o comportamento do forno, praticamente um ser vivo sujeito a oscilações de humor. O local já recebe outros padeiros e aprendizes. Eis que temos uma padaria coletiva, ainda sem nome, mas que vai fermentando a cena de pão da cidade, com um por todos e todos pelo pão!

*É costumeiro na Junta Local que produtores sejam chamados pelo nome do seu empreendimento. Exemplo: “Fala, Blin, você sabe se a Granola Real passou por aqui hoje?”

Crédito das fotos: Samuel Antonini