Texto por Élide Vecchi, produtora do K. Probióticos*
Passa-se muito tempo na feira, mas passa-se ainda mais à espera dela. Antes mesmo da cidade se agitar e dos passantes chegarem empunhando suas sacolas e carrinhos, os feirantes entreveem o dia despontar e só encerram suas atividades quando o último caminhão de lixo passa e recolhe tudo.
No intervalo entre todo esse tempo vivido na feira, existe também toda uma vida que se ensaia à espera dela, ou melhor, ao preparo dela. Como em longas fermentações, muito embora se calculem todos os ingredientes, anotem-se todos os passos e utilizem-se de todos os instrumentos específicos, existe um fator determinante que opera a sua própria revelia organicamente, desafiando muitas vezes a empiria, o acaso. Nada deve ser apressado, e não se deve perder tempo, no fim tudo, acontece no tempo certo.
Apesar de o kombuchá, assim como todo fermentado, ser de tradição milenar, e como tal, anterior a minha existência, nem sempre ele fez parte da minha vida ou da idealização que eu tinha de trabalho. A verdade é que eu tinha acabado de me formar em Ciências Sociais, e apesar de todos os indícios durante o curso de que qualquer idealização de um mercado de trabalho promissor cairia por terra, foi ao final do curso que me confrontei com a realidade de que muito possivelmente, trabalhar com o que eu gostaria e tinha investido nos últimos anos, seria mais difícil do que eu imaginava.
Por azar (ou sorte), não tendo que servir a muitas idealizações, a profissão de sociólogo escancara o caminho para que eventualidades aconteçam mais naturalmente. Eventualidades como o kombuchá, que eu, meu irmão e minha cunhada fazíamos virar trabalho. Antes o fazíamos porque gostávamos do processo e da ideologia, porque era gostoso e passível de se fazer em casa. Tornou-se possibilidade de “trabalho” quando conhecemos a Junta Local. Se nós gostávamos, nos fazia bem e aguçava a curiosidade dos nossos amigos, e se em muitos países essa era apenas mais uma bebida possível entre tantas, porque não disseminá-la em uma feira com a ideologia de aproximação de quem faz de quem consome?
Da primeira reunião à primeira feira, das primeiras feiras a muitas fermentações de chá preto, açúcar, bactérias e leveduras e acima de tudo, tempo, o K. foi se ajuntando cada vez mais à Junta, e a minha sociologia cada vez mais ao K. Como produtora de longas fermentações na feitura do kombuchá e passando muito tempo na feira e todo outro tempo no preparo para ela, foi um dia pensando naquele fator determinante que opera ao seu próprio ritmo, o acaso, que o mesmo me acertou. Estava trabalhando em uma edição da Junta com a Chega Junto, e se do meu lado eu reconhecia os rostos, os produtos e os produtores que dividiam feira a feira comigo há meses – que agora somavam anos – do outro eu vi, talvez pela primeira vez, uma multiplicidade de rostos, bandeiras, cores e comidas que nunca tinha realmente observado.
Togo, Síria, Colômbia, Líbano, Nigéria, Venezuela, Congo… lado a lado, uma profusão de aromas, texturas, cores, sotaques e oposições no prato, apresentando suas culturas e representando seus países através da culinária autêntica. Talvez isso em qualquer outro dia tivesse me batido de outra maneira – apenas numa observância displicente, porém, me aventurando naquele momento em um mestrado em Sociologia, tinha há poucos dias antes dessa edição da feira, sido interpelada por aquela ansiedade que assola todo mestrando – principalmente aqueles com muito trabalho em feira e pouco na academia: sobre o quê escrever?
Normalmente escutamos de maneira despretensiosa nas aulas de Antropologia que nós não escolhemos nosso objeto de estudo, ele que nos escolhe, e se eu sempre fui mais afeita à Sociologia, nesse dia específico não pude negar o flerte antropológico contaminado pelo mesmo acaso que muitas vezes ocorre nas receitas culinárias; fui escolhida pelo objeto, no seu próprio tempo.
Convidei então a Luciara, idealizadora do projeto, para bater um papo e contar da minha ideia de escrever sobre (e, quem sabe, entender) o Chega Junto na sua essência, através de quem o fazia. Acostumada também com o ritmo próprio de tudo o que é institucional e formalizado no Brasil, imaginei que seria também dessa maneira morosa e distanciada meu contato acadêmico com os responsáveis pela feira e os participantes.
Tive aí minha primeira frustração – ainda bem! A Luciara me encontrou em um café e o que imaginei ser uma conversa preliminar durou mais de duas horas. À distância do meu olhar da barraca na feira, superficialmente a Luciara era uma pessoa que trabalhava na área de meio ambiente e que encabeçava o Chega Junto depois de ter permeado a Junta Local cozinhando e propagando o Food Revolution. Duas horas, três cafés, um bolo e uma água depois, a Luciara ainda era uma pessoa que trabalhava na área de meio ambiente, mas também que vinha de uma família do sul da Espanha, que, depois de morar na Irlanda, foi para o México, onde começou a estudar sobre vinhos. Lá, montou uma feira com produtores locais associado ao Food Revolution e aí, fervilhada de ideias, decidiu voltar ao Brasil e ensaiar na Junta o que viria ser o Chega Junto.
No Chega Junto, os refugiados e migrantes são convidados a cozinhar algo às vezes autêntico do seu país, às vezes algo que valorizam como maneira de expressão da sua diversidade. Não é obrigatório já ter trabalhado com comida nem ser um especialista, e sim se abrir a um convite à experimentação que permita um novo olhar, e quem sabe, com isso, possa incentivar maior visibilidade através da riqueza contida nessa capacidade de criação.
A ideia do meu projeto de pesquisa então seria, ao entrevistar essas pessoas que fazem parte do projeto e ao ouvir suas histórias através da sua própria voz, ouvir também a história sobre a eficácia do próprio Chega Junto, uma vez que ele tem como norte a promoção da integração social através da valorização multicultural.
Não é preciso lembrar que ser refugiado é resistir, é por essência lutar contra uma condição que muitas vezes retira ou nega sua própria identidade. Quando se está entre lugares por muito tempo e em condições devastadas e destruídas, muitas vezes é impossível contar uma história de vida com ordem narrativa, e se os detalhes se perdem, diminuem-se ainda mais a possibilidade de ligar a pessoa que foi obrigada a sair do seu lugar de origem à sua própria identidade. Nesse sentido, nada seria mais afetivo e próprio da construção da própria autenticidade do que a memória afetiva com a qual carregamos receitas familiares e experiências sensoriais nostálgicas de um passado compartilhado com entes queridos; na qual, ainda que dependa de cada cultura, dificilmente se pode retirar tal ancestralidade de cada uma delas.
Sempre carregaremos conosco uma bagagem emocional através dos cheiros e gostos que fomos submetidos ao passar dos anos, e cada vez que os provarmos, novamente nos transportaremos às velhas sensações, aos lugares conhecidos, a nossa história, e a quem somos genuinamente.
Por exemplo, quando a Maria, venezuelana de família libanesa, morando há dois anos no Brasil, me recebeu a pedido da Luciara em abril deste ano para uma conversa, o intuito também era uma breve entrevista para esse possível projeto de pesquisa. Porém para a antropologia, os processos culinários sempre ocuparam um papel de destaque. Para Lévi-Strauss, por exemplo, a dimensão da preparação da comida, dando um enfoque simbólico, foi capaz de definir a cozinha como articuladora das categorias natureza e cultura, e também, capaz de expressar uma linguagem por interligar sistemas de oposição. Comer, no entanto, também é um ato orgânico que se tornou social, e se era de se supor que a Maria fosse me receber em um ambiente que demonstrasse certa formalidade esperada pelo tom de uma entrevista, foi na sua casa que ela preparou um banquete, cadenciado por duas horas de conversa com sua família.
Pão árabe de abóbora com alecrim, pão árabe de espinafre com limão siciliano, falafel, hommus-tahine, pasta de pimentão defumado, babaganouch, salada fattoush, kibe doce de semolina e erva doce com recheio de nozes e calda de água rosa… Convidar uma pessoa, até então desconhecida, para comungar da riqueza de cores e aromas autênticos de uma culinária específica, porém traduzidos à linguagem de um lugar estrangeiro – à brasileira, torna-se mais que uma atividade de se alimentar. Convidar essa mesma pessoa para comungar dessa experiência, sem saber que a mesma vem de família libanesa e tinha todos esses pratos num imaginário, formulado por histórias contadas pela sua mãe, sim, é novamente o acaso, mas acima de tudo, uma valorização da memória.
Imediatamente me lembrei dos meus oito anos, quando minha mãe fazia mais uma das suas odes à cultura árabe, me contando pelo o que devia ser a vigésima vez seguida que quando ela havia menstruado pela primeira vez, meu avô tinha comprado toda sorte de pastas, kibes, esfihas e babaganouch para comemorar com a família. Lembro que sequer compreendi exatamente o que eram todas essas coisas, e tampouco a importância do evento, mas me pareceu uma ótima maneira de celebração – a qual eu não via a hora de participar.
Comer congrega e estrutura sociedades, e se organiza através dos hábitos alimentares de cada sociedade nos mostrando como se criam os grupos, eventos e comemorações, mas acima de tudo, quais são os elementos decisivos e comunicadores de identidade de cada grupo.
Quando eu perguntei qual era a diferença que a Maria via entre o Chega Junto e as outras feiras que utilizavam da gastronomia para integração social dos refugiados, ela me respondeu que eles tinham “verdade em ajudar”, então quando a Maria me recebeu para uma entrevista formal, com um café da manhã completo por três horas me contando da sua vida, era mais do que para me apresentar sua proficiência culinária ou sua própria cultura através do fazer culinário, era uma forma, além de demonstrar reconhecimento pela oportunidade concedida através do espaço da feira, de valorizar a si mesma e sua história até ali.
Faz parte da natureza humana comer junto, e nesse sentido, o idioma alimentar é um veículo de representação de si mesmo e transmissão de valores simbólicos capazes de mediar trocas culturais. Se comer a comida dos outros é teoricamente mais fácil que entender sua língua, a cozinha é então, a principal porta de entrada para se entender identidades diferentes e falar novos idiomas.
Além disso, torna-se uma possibilidade ressignificar ingredientes e práticas, independente de suas próprias heranças alimentares, como quando a própria Maria me disse que preferiu a cozinha libanesa à venezuelana, porque a farinha que tínhamos aqui não era muito parecida com a farinha “dela”, e que aqui ela gostava da ideia de poder cozinhar coisas diferentes.
A possibilidade de poder valorizar suas heranças através do fazer culinário – ou até mesmo de abandoná-las – é também a possibilidade de formular um novo caminho de expressão, investido de poder criativo. Acima de tudo, é também contar uma história, afinal a comida também é história.
Quem me falou isso, e que me tocou profundamente, foi a Nelly, outra chegada do projeto, vinda da Colômbia. Quando comecei a entrevista, perguntei como tinha sido a transição para o Brasil, e se aqui tinha sido o primeiro lugar que ela tinha buscado refúgio. Ingenuamente não antevi a carga emocional embutida nesses relatos. Meu questionário com cerca de vinte perguntas, repousou por uma hora na sétima: porque buscou refúgio? Tendo fugido dos paramilitares da Colômbia, e obrigada por eles a viver aprisionada com a família, passando fome e ficando doentes, ela me respondeu que seria longo contar toda a trajetória dos eventos que ela lembrava, porque havia muito do que ela queria esquecer, mas que se no começo, aqui tinha sido muito complicado pelo idioma, hoje ela tinha um espaço para ela, tinha um lugar, “com pessoas muito mais lindas e que querem agradar, ajudar, e que sejamos parte da cultura e da comunidade, e não mais refugiados, mortes, massacres e bombas… algo negativo”.
Ela, umas das primeiras “chegadas” ao projeto, nunca tinha trabalhado com comida diretamente, apenas na parte administrativa de um restaurante familiar, mas me contou que apesar disso, vinha da tradição familiar de fazer diários e obrigar as crianças a “estarem presentes”. De acordo com ela, “por ser uma mulher antiga” era obrigada pela mãe a “ficar e aprender; de onde plantou a como fazer”, porque um dia poderia precisar. Sorrindo, me disse que achava curioso que sempre pensou que esse dia nunca chegaria – e de fato, nunca chegou na Colômbia, mas havia chegado agora, no Brasil e, “que bom que tenho todas essas receitas guardadas na minha cabeça, esses sabores, essas cores e texturas e agora vou aprender a prática…”.
Finalizando a entrevista, quando perguntei se ela tinha interesse em continuar trabalhando na prática culinária, ela me disse que sim, que estava inclusive fazendo cursos graças à parceria do Chega Junto com a Cáritas e o SEBRAE, e que mesmo tendo experimentado outros trabalhos e que ainda hoje faça outras atividades, queria se profissionalizar, porque através da culinária ela estava vencendo seus medos e conhecendo outras culturas.
A comida é história não somente dos ingredientes escolhidos e das receitas escritas em diários familiares carregados de bagagem emocional e hereditária, mas também histórias de pessoas com nomes, famílias e culturas oriundas de países muitas vezes lembrados por histórias que eles gostariam de esquecer. A comida nesse sentido, e o ato de cozinhar, têm o poder de salientar, não àquelas experiências relacionadas a um passado que se pretende abandonar, mas sim de uma nova história escolhida para se contar.
Assumindo que não é possível esquecer aquilo que vivemos – e nem quem somos, ainda podemos, no entanto, ressignificar nossa própria história, valorizando aquilo que temos de mais autêntico e aquilo que nos é mais caro carregando conosco orgulhosamente, independente da necessidade de diários familiares para nos lembrar.
Nesse sentido, quando o Chega Junto, aliado à Junta Local e outras parcerias, promovem um espaço comunitário em torno da comida, eles estão mais que encorajando uma experimentação de hábitos alimentares singulares, eles estão fomentando um reforço das identidades culturais regionais ligados aos hábitos e tradições; onde em uma lógica do global, fortalece-se, primeiro, o local, e em um universo de muros, promovem-se pontes.
* Élide Vecchi é mestranda em Ciências Sociais pela PUC-Rio e colaboradora do projeto Chega Junto
>> Este texto faz parte da edição #6 de 2017 da Revista da Junta Local <<
Crédito das fotos: Samuel Antonini