Dado o enfoque sobre o campo nessa edição da revista, pedimos que Vicente Saint-Yves, do Animall, compartilhasse sua experiência na criação de porcos, companheiro histórico do homem na agricultura (e na panela).
Às vezes taciturno (mas nunca soturno) nas feiras, ele nos retrucou com uma eloquente meditação sobre o seu trabalho, o ocaso de um porco – e sua relação complexa com o homem – e sua substituição pela “carne suína” industrial, esta sim a verdadeira vilã, que facilita a vida argumentativa daqueles com visão em preto e branco. O caminho rápido da indústria matou o porco, matou a riqueza da sua história com o homem e seu sabor.
Vicente quer trazer de volta o PORCO – e faz isso beneficiando a sua carne como se fazia há não muito tempo atrás. A preocupação com o que comem seus filhos o levou a perseguir suas inquietações e abandonar a labuta diária em uma cozinha na cidade e se mudar com a família para o campo.
Não confundam Vicente com o carnivorista vociferante e tatuado que posa de politicamente incorreto bad boy fazendo o elogio imoderado à carne (e que na cozinha geralmente não é capaz de transcender o seu hamburguerzinho rock ‘n‘ roll). Vicente não fala da carne com dedo do meio em riste. Sua história com o porco vem de um respeito vivido através da gastronomia e da criação dos animais do campo; vem de uma pesquisa constante e do entendimento de que um bicho rende muita carne e que toda ela é saborosa. Esta é a base do seu trabalho.
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Texto por Vicente Saint-Yves, do Animall
Os porcos acompanham os humanos desde séculos. Praticamente endeusados em algumas culturas, ao mesmo tempo que tidos como animais impuros por outras. Tudo isto provavelmente devido a uma anatomia interna tão parecida com a nossa. E, como nós, também onívoros.
E só.
Semelhanças e diferenças respeitadas, são seres fantásticos. Do ponto de vista, de quem está no campo, podem facilmente ser considerados a melhor forma de reciclagem de matéria orgânica existente. Por isso, durante tanto tempo nos acompanhamos. Com eles, não existe “jogar fora”. Aproveitam tudo aquilo que não comemos e transformam na mais deliciosa de todas as carnes.
Graças a eles, e principalmente à sua gordura, a gastronomia deu um salto. A preservação de sua carne foi um passo evolutivo importantíssimo na história gastronômica de diversas culturas. Temos que lembrar que a refrigeração é um advento muito recente. E que trouxe uma triste facilidade: a carne deixou de vir de um ser vivo, com quem você ou alguém próximo teve uma relação íntima de interdependência.
Perdemos a noção do animal, que passou a ser um pedaço de comida “gostosa” que você pega na gôndola do supermercado sem saber de onde veio, como viveu e que impacto teve no nosso meio.
Quando a “revolução verde”, que trouxe os pacotes de alta produtividade rural baseados nos agrotóxicos e adubos químicos, rebatizou o porco como suíno, fudeu.
Passamos da simbiose à exploração; da sustentabilidade à poluição; da compostagem às lagoas de decantação; do pasto às commodities.
Passamos de olhar nos olhos de um bicho que vimos nascer e crescer todos os dias e, em determinado dia, com respeito e agradecimento, solenemente, sacrificá-lo (e com o mesmo respeito, fazê-lo “renascer” como bacon, jamón ou porco na lata, por exemplo) aos mega abatedouros onde os “suínos” são processados por hora, a cada minuto, todos os dias do ano, resultando no lombinho seco, no “presunto” e, principalmente, na linguicinha, que precisa de tanto glutamato, vindos de Chapecó.
Quem, antes do fatídico acidente com o time de futebol, sabia que lá é onde mais se matam “suínos” por dia no mundo?
Quem sabia das “matrizes suínas” em gaiolas? Dos rabos e presas cortados? Dos antibióticos? Do “m² por cabeça”? Dos “kg/ração/R$/animal terminado”? Dos nitritos, nitratos e nitrosaminas? E – last but not least – do glutamato?
Sem entrar no mérito de se o glutamato faz bem ou mal… É inevitável que nos perguntemos: Por que hoje no Brasil a mais saborosa de todas as carnes, fundamento da gastronomia, é praticamente impossível de ser encontrada nos grandes centros sem esse aditivo?
Fruto de minha busca, cheguei a uma resposta simples: Porque não é carne de porco! É “suíno”.
Quando o porco é porco, e faz suas porcarias (termo que, por causa do suíno, virou uma expressão pejorativa), e come o que quer e vive sua vida – solto no pasto – em seu tempo e em simbiose com a nossa vida… o resultado é carne de porco. Para essa carne, os únicos aditivos necessários são respeito, tempo e sal. Como antes. Numa volta para o futuro.
Os suínos, coitados, levam uma vida sedentária e carente de estímulos, desde o dia de nascimento já em contagem regressiva, com uma dieta constante e sem nenhuma variação. Acabam seus dias como a “outra carne branca”, perpetuando em sua morte uma existência insossa e infeliz. Aí, só com glutamato mesmo…
Nos tempos de hoje é essencial que quem consome carne busque saber sua origem. Lembrar que a carne já foi um ser vivo. Saber que ela não vem de uma bandejinha de isopor com absorvente.
É essencial procurar entender qual é a realidade nas pequenas e médias propriedades rurais. E que a tão controversa “exploração animal” é muito mais cinza que preto no branco. E principalmente, trazer essa agenda à tona!
Por que os açougues de bairro foram extintos? Por que o “processamento” de carne é todo feito a portas fechadas em lugares com segurança extrema? Por que a legislação exclui quem não tem volume, e é furada, uma vez que, enquanto nas grandes cidades a carne vem de frigoríficos gigantes, a maior parte da população fora destes centros só come carne proveniente de “abate clandestino” ou, como dizemos na roça, “frigomato”?
JBS ou Frigomato?
Eu sei que existe uma terceira via…
Crédito das fotos: Samuel Antonini