Texto por Manu Saldanha, do Sítio Córrego Alto

Em 2012 eu, Manuella, e Tomé, do Sítio Córrego Alto, começamos nosso envolvimento com a terra da família dele em Trajano de Moraes, norte do estado do Rio de Janeiro. Quanto mais frequentávamos a fazenda, maior era o sofrimento na hora de voltar para a cidade. Começamos a criar laços com as pessoas locais, entendendo a realidade de uma fazenda colonial que já não era uma potência independente.

Nesse mesmo ano, fizemos nossos primeiros plantios: uma horta e um canavial para produção de cachaça. Foram dois anos de muito estudo e trabalho para reativar o alambique da propriedade, enquanto isso esperávamos pelo primeiro corte da cana.

Em 2013, a Emília, nascida e criada na fazenda, desempregada e com quem não tínhamos a menor intimidade, perguntou se não precisávamos de ajuda com a horta. E assim começamos nosso engrandecedor convívio. Emília se tornou nossa parceira e professora, e ainda hoje nos ensina muito.

Com os ensinamentos e ajuda de Emília, a hortinha cresceu, e assim começamos a vender cestas de hortifruti para amigos e conhecidos. E o que mais atraiu nossos primeiros clientes foi a forma de produção: livre de agrotóxicos e adubos químicos. Ou seja, além de conhecer quem plantava e saber de onde vinha o que comiam quinzenalmente, sabiam também que eram vegetais saudáveis. Melhor impossível! Mas como poderíamos crescer garantindo a qualquer um a qualidade dos alimentos que plantávamos? E em uma visão mais ampla: como investir em um projeto sustentável para deixar de lado o modelo falido de uma fazenda colonial nos dias de hoje?

Em 2014 nos mudamos de vez para o campo. Os estudos e as práticas só cresciam e começamos a entender melhor a agroecologia. No mesmo ano, participamos pela primeira vez da Junta Local, entrando em um novo mundo de valorização do alimento, da terra, do tempo e dos produtores. Era um projeto no início de sua caminhada, como o nosso. E como foi fértil esse encontro! O Certificado de Conformidade Orgânica começou a se mostrar cada vez mais necessário, não só pela garantia de qualidade, mas também pelas possíveis portas abertas para o escoamento da produção, porém ainda parecia muito distante e complicado para nós.

Esse certificado dá ao produtor o direito de usar aquele selinho que vemos cada vez mais nos mercados, o “Produto Orgânico Brasil”. Com o selo, o produtor consegue garantir a qualidade de seus cultivares, que nesse conceito engloba a sustentabilidade ambiental e social e alternativas ao uso de agrotóxicos, adubos químicos e sementes transgênicas. No Brasil contamos com dois caminhos para a obtenção do certificado: através de uma certificadora (por auditoria) ou entrando em um grupo de SPG (Sistema Participativo de Garantia).

As certificadoras são empresas (como a ECOCERT e a IBD) credenciadas e fiscalizadas pelo MAPA (Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento), aptas a avaliar se o produtor está cumprindo as conformidades nacionais e, dependendo da empresa, internacionais de cultivo orgânico. As certificadoras também são responsáveis por acompanhar e atualizar os processos e dados do produtor, e são acreditadas pelo Inmetro. O processo ocorre a partir de análises e visitas de um técnico e preenchimento de um plano de manejo pelo produtor. O plano de manejo é o registro de uma estimativa anual de como se espera trabalhar a terra. Como o produtor pretende combater “pragas”, adubar a terra, proteger e usar a água, escolher o que plantar. Depois acontece a auditoria e após as avaliações finais, caso esteja tudo nos conformes, o produtor ganha o certificado, que deve ser renovado a cada ano.

Já os SPGs são grupos formados em sua maioria por produtores, mas que também podem abraçar técnicos, consumidores e comerciantes, por exemplo. O controle de qualidade das produções é feito através dessa rede social, de forma coletiva. No lugar da certificadora, quem faz a avaliação final e emite o certificado é o OPAC (Organismo Participativo de Avaliação da Conformidade), que também é credenciado e fiscalizado pelo MAPA. Esse organismo varia de acordo com a região, aqui no estado do Rio de Janeiro contamos com a ABIO (Associação de Agricultores Biológicos). No primeiro momento para obtenção do certificado, o produtor deve participar de uma reunião do SPG e de uma visita de certificação de outra propriedade. Cumpridas essas etapas, ele já pode receber a visita em sua propriedade e deve preencher o plano de manejo.

Como esse é um modelo participativo, toda visita deve ter a presença do facilitador do grupo, o coordenador e pelo menos um produtor orgânico. Estando tudo nos conformes, o produtor recebe o certificado, que também é renovado anualmente, e deve participar das reuniões bimestrais do seu grupo de SPG. As reuniões são o momento de troca, decisões e planejamento do grupo, baseadas no compromisso coletivo e registradas em ata para controle do OPAC. Um agricultor só está de acordo com a conformidade se todos estiverem.

O SPG, em geral, é a melhor opção para o pequeno produtor que não deseja exportar e não possui capital para investimento. E, ao meu ver, o grande diferencial desse caminho é a rede de troca entre produtores que se forma.

Voltando à experiência pessoal, em 2015 descobrimos que existia um grupo de SPG no nosso município. Empolgados, fomos visitar cheios de expectativas e tomamos um banho de água fria. Sentimos que o grupo não estava aberto a receber pessoas de fora de seu distrito, e depois de tentar contato algumas vezes, acabamos desiludidos com um processo que parecia ser tão bonito.

Quase dois anos depois, convencidos por um amigo de infância, também agricultor, de que valia a pena tentar de novo e investir no certificado, fomos fazer uma visita ao grupo do qual ele fazia parte. Esse grupo fica em Secretário, distrito de Petrópolis-RJ, a quatro horas de distância da gente. E mesmo com esse chão todo entre nós, fomos recebidos de braços abertos, encorajados e convidados a permanecer no grupo. Descobrimos que não existia uma regra que proibisse a entrada de membros de outros municípios, e depois de esclarecer a situação com a ABIO, passamos a compor o SPG de Secretário. Com eles mergulhamos no método agroflorestal de plantio, que sempre nos encheu os olhos mas não passava de teoria.

Em maio deste ano, após cumprir todas as etapas do processo, recebemos nosso certificado de conformidade orgânica. E a cada reunião de grupo voltamos para casa energizados com tanta troca. Hoje aprendemos a compreender a realidade do nosso local e por isso, dentre outros motivos, decidimos investir em alimentos pouco perecíveis, como milho processado, arroz e feijão.

Não posso falar com propriedade do processo por auditoria, mas sobre o SPG, agora que finalmente fazemos parte, posso dizer que não é difícil como parece, é um caminho que existe para ajudar o pequeno produtor a se certificar, se informar, se formar e que funciona. Às vezes fica difícil de acreditar, mas tem muita gente por aí querendo trocar e se ajudar.

Juntos somos mais fortes!

Crédito das fotos: Marcelo Paternoster