Por Alice Lutz
“Milho
Punhado plantado nos quintais.
Talhões fechados pelas roças.
Entremeado nas lavouras,
Baliza marcante nas divisas.
Milho verde. Milho seco.
Bem granado, cor de ouro.
Alvo. às vezes vareia, – espiga roxa, vermelha, salpintada.”
(Cora Coralina, Poema do Milho)
Um dos cultivos aqui do Sitio São José é o milho. Em família, já debulhamos na mão mais de 100kgs, só nesta última safra. A parte da palha, cabelo e toda a plantação e colheita são resolvidas com pulsos firmes e mãos calejadas. Mas, confesso que meus dedos clamaram por ajuda e me fizeram entender que sempre será importante, com sabedoria e respeito, aliar os avanços e a tecnologia ao campo.
A debulhadora, ainda manual, acelera o processo de separação das sementes para produção de farinha e quirera. Um belíssimo moinho de pedra movido a água, centenário e construído pelo pai do nosso vizinho, dá sentido e soma força na hora de moer pra fazer a farinha de milho, mais conhecida como fubá.
E como dizem os versos de Cora Coralina, é um milho que “vareia”, é um milho crioulo. E o que vem a ser este milho? É basicamente todo milho que não foi apropriado pela indústria. Suas variedades sobrevivem passando por mãos de geração em geração e desbancam a ideia de que o milho é aquele amarelinho, de grão uniforme. No nosso caso, conseguimos sementes no sertão, com a família de um dos agricultores que trabalha conosco.
Na última safra do milho crioulo que cultivamos, colhemos algo em torno de 300 kgs. De milho para pipoca a milho “comum”: roxo, vermelho, branco, amarelo, laranja. Um verdadeiro arco-íris da biodiversidade.
O mato entrega diariamente uma surpresa. Cada palha tem por fora uma tonalidade. Ao descortiná-las, a revelação de que uma mesma espiga pode ter grãos de múltiplas cores.
Esse maravilhamento vem junto com a consciência da necessidade de lutar, pois toda essa diversidade está ameaçada. Vivemos em um sistema que produz quantidade enorme de alimento como mercadoria e não para alimentar a população do seu país. Fomos afastados das origens, fomos afastados do alimento em si.
O caso do milho é muito didático. Mesmo sem ser nativo ao Brasil, ele chegou logo de início com os povos originários e constituiu a base da alimentação de muitas nações indígenas. Com a chegada dos europeus, seu cultivo e uso foi assimilado na culinária “caipira” termo usado por Carlos Alberto Dória para designar as formas de alimentar que se disseminou em todo interior brasileiro. Cada grão de semente que se perde representa uma perda da nossa cultura e sabedoria.
Uma semente de milho crioulo carrega nela todo um Brasil. Toda uma história ancestral e de respeito ao alimento. E a história que queremos contar. A história do Brasil não é, e não deve ser, a de grandes commodities de soja, milho, açúcar, etc. Mas sim, a de ensinamentos que foram passados de gerações em gerações, que cuidaram de sementes tão preciosas como a do milho como se fossem um bebê. Hoje, a importância da agricultura familiar e da redistribuição de terras é algo básico para conseguir não só trabalhar no combate à fome como para criar um modelo possível de futura vida humana.
Há mais ou menos 17 anos foi liberado no Brasil o cultivo de sementes transgênicas. Com isso, a liberação e aumento desenfreado do uso de agrotóxicos. Monoculturas cada vez mais devastadoras pelo país, gerando mais fome para a população e mais lucro para os grandes conglomerados do agronegócio. Não há como não vincular isso ao momento em que o fantasma da fome volta a rondar o Brasil e o mundo. Segundo o relatório de segurança alimentar e nutrição no mundo 2020 (SOFI) este é o quinto ano consecutivo de aumento da fome. Na última semana celebramos o merecidíssimo Nobel da Paz recebido na ONU pelo Programa Mundial de Alimentos (WFP, em inglês) por seus “esforços para combater a fome” e prevenir seu “uso como arma de guerra e conflitos”. Porém, o prêmio mostra que de fato a fome está de volta.
Recorro à brilhante pesquisadora Larissa Bombardi para precisar esse cenário. Em sua publicação de 2017 “Atlas do agrotóxico – Geografia do Uso de agrotóxicos no Brasil e conexões com a União Europeia” ela traz a seguinte informação:
“Um dado fundamental a este respeito é que no Brasil tem-se 504 ingredientes Ativos com registro autorizado, ou seja, de uso permitido. Entretanto, destes, mais de uma centena deles são proibidos na União Europeia, precisamente 149. Portanto, 30% de todos os ingredientes Ativos (agrotóxicos) utilizados no Brasil são proibidos na União Europeia.”
Atentando exclusivamente ao milho (neste mar de tantos alimentos que deixaram de ser alimentos para se tornarem mercadorias envenenadas), 88,4% de sua produção é transgênica. A conclusão inevitável é que muitos foram afastados do milho de verdade. Penso na minha geração, jovens que hoje têm entre 17 e 35, e nunca conheceram um milho crioulo ou sequer que não fosse transgênico. Isso é assustador e não haverá movimento de contestação se não houver conhecimento e conexão entre os focos de resistência ancestral.
E eis que o acaso do que se descobre dentro de cada espiga se somou à serendipidade dos encontros. Há pouco tempo, soube do Projeto Crioulo, do agrônomo Lucas Sousa. Depois de 10 anos trabalhando com cultivo de alimentos de forma orgânica em sua fazenda Vista Alegre – MG, criou o Projeto Crioulo voltado para o cultivo de sementes de milho crioulo e a partir delas a produção de fubá. Lucas trabalha junto a essas jóias como forma de resistência. Nos últimos meses se aliou ao exemplar trabalho realizado pela Casa Ataré Lab, liderada por Anna Guasti, na luta por preservação da nossa biodiversidade. E ainda juntaram-se a Fundação Tortilla, instituição mexicana presidida por Rafael Mier que desde 2015 trabalha pela promoção da cultura e consumo do milho e da tão famosa receita típica mexicana, a tortilla.
Participei de uma aula online introdutória promovida em parceria com a Fundação Tortilha , do México, e a Casa Ataré Lab. De repente estava conectada com um cultivador de milho crioulo em Minas Gerais e Rafael um profundo conhecedor da evolução e variedades do milho falando diretamente do seu berço: o México. Aprendi sobre sua evolução botânica e até seus usos culinários pelo México, passando pelas diversas formas de classificação baseada na cor e tipo de “dentes” do grão. Fui tomada por uma enxurrada de informações e indagações. Você sabia que a maior variedade de espécies de milho de pipoca crioulo está no Brasil? Quantos já viram um milho de pipoca diferente daquele amarelinho que vende no mercado? Aonde está esse Brasil e por que não acessamos essa imensidão que é ser abrigo de uma tão vasta biodiversidade? Por que estamos perdendo esta diversidade, não apenas no Brasil mas também no México?
Estou ansiosa para as próximas aulas, que começam no próximo dia 22 de outubro e celebram a força e diversidade do milho. Trata-se de um pacote de 6 aulas com Rafael sobre milho (maíz como se conhece no México), suas origens, histórias e sabores mexicanos.
Retraçando o caminho do tamale até a pamonha acredito que estaremos tecendo um lindo coletivo, repleto de tantos que lutam para preservar essa herança tão valiosa em forma de semente. Cada vez que entregamos uma leva do nosso fubá para clientes, sinto que cheguei lá. Sinto que fiz o pequeno alumiar. Sinto que minha luta é coletiva e tem lugar.
Encontro harmonia com esse Brasil de gente que sempre brilhará. Brilhará feito milho em boneca. Estourará feito pipoca que por nossa luta é colorida e biodiversa.
Mais informações pelos sites e redes sociais abaixo:
Projeto Crioulo