Por Thiago Nasser
Fotos de Samuel Antonini

 

Considero “A Fuga das Galinhas um dos grandes clássicos do cinema. Digo isso com toda sinceridade, sem a menor intenção de soar cômico ou de ser acusado de parcialidade por conta de uma notória afeição que nutro por galináceos em todo seu esplendor ciscante. 

No filme, as galinhas, com a ajuda de Rocky Rhodes, um galo americano que sem querer aterrissa numa granja no interior da Inglaterra após ser atirado por um canhão de circo, se alia a Ginger, uma poedeira com inteligência acima do normal, em seu plano de fuga para salvar todo plantel. Tudo isso acontece porque um belo dia as galinhas ficam a par do plano da Sra. Tweedy, dona do estabelecimento, de converter a operação numa fábrica de torta de galinha. A cena em que as galinhas são informadas deste horripilante destino é um primor de comédia absurdista e uso revolucionário da técnica de stop-motion

No entanto, esse retorno ao filme aqui na Revista da Junta Local acontece por outro motivo, menos cinematográfico. A Sra. Tweedy resolve “pivotar”, para usar o jargão das empresas, seu negócio por um motivo que é comum a muitos outros no nosso sistema alimentar: as margens de lucro na produção de ovos não são altas e é preciso achar outra maneira de fazer dinheiro. A solução dela: uma enorme geringonça automatizada que reduz a simpática individualidade de cada galinha a recheio de torta, uma alegoria eficaz do sistema alimentar atual, especificamente no que tange seres vivos, cada vez mais tratados apenas como uma massa disforme e indistinta moldada para atingir o lucro. 

E apesar de seus méritos cinematográficos, Fuga das Galinhas foi capaz de ir só até certo ponto na ilustração da crueldade deste sistema. Este papel coube a documentários como Food Inc. e relatos de jornalismo investigativo que conferiram detalhamento e graficidade a práticas como debicagem, confinamento em gaiolas, uso indiscriminado de antibióticos, descarte de pintinhos e galinhas doentes, cercas elétricas, flashes de luz para manter galinhas acordadas e assim em diante, submissão forçada a fome e sede para acelerar o processo de muda, “melhoramento” genético para produzir raças mais produtivas, porém incapazes de suportar seu próprio peso. Estas são práticas empregadas para a produção de pra lá de 95% do que consumimos não apenas de carne de aves, mas também dos ovos. Basta um pouco de boa vontade (e preparo estomacal) para encontrar vídeos no NETFLIX ou no YOUTUBE que desnudam o que há por trás do “agropop” fofo da “avicultura moderna”. Para o leitor que queira se aprofundar no assunto, sem sacrificar seu almoço, recomendamos dois excelentes podcasts que recentemente abordaram o assunto com seus microfones voltados para a realidade brasileira. O singelo ovo estalado do dia-a-dia é muito provavelmente oriundo de uma galinha que foi muito infeliz. 

As galinhas são animais extremamente sensíveis a mudanças que a separam do seu comportamento normal: ciscar, explorar, empoleirar, socializar (e muito!) e receber aquele olhar 43 do galo do seu piquete. Apesar das raças de galinhas modernas já serem resultado da domesticação de seus antecessores do sul da Ásia, de onde originam, nenhuma delas foi preparada para o confinamento ou para a produção em regime industrial. O resultado disso é comportamento canibal, níveis altíssimos de stress e por aí vai. E isso se reflete também na qualidade do ovo que vai parar no seu bolo e na omelete. Menos sabor, menos nutrientes. Também percebemos isso no entorno dos lugares onde as galinhas são criadas e no ambiente como um todo: condições de trabalho precárias, danos ambientais resultantes dos dejetos produzidos e a monocultura usada para produzir soja e milho transgênico para alimentar estas galinhas.

Consumidores estão antenados, as indústrias parecem responder e algumas redes de supermercado já fizeram promessas de deixar de revender ovos que não sejam de galinhas livres de gaiola nos próximos anos. E é que entra em jogo toda uma zona cinzenta que permite espaço suficiente para que se haja uma aparência de mudança, ainda que muito pouco de fato aconteça. Nos últimos anos proliferaram marcas e selos que celebram suas galinhas “livres de gaiola”, e “caipiras”, buscando captar um anseio a retornar um modo produtivo com o qual muitos tiveram contato no passado ou em sítios. No entanto, essa mudança não resiste a um questionamento mais profundo. Se já existe uma regulação muito específica para o caso da produção de ovos orgânicos, ela não existe para outros selos e designações que estão sendo usados. Existem regulamentações que definem de forma vaga o que consiste em “bem-estar animal”, por exemplo. E se não existe regulamentação não existe fiscalização. Algumas certificadoras particulares buscam preencher esse vácuo, contudo, com visitas “surpresa” avisadas com antecedência, e sem penalidades graves para empresas quem não as cumprem se não a perda do certificado.  Na prática, são as próprias empresas que definem o que é “livre da gaiola”. A galinha pode estar fora de uma gaiola, mas pode estar ciscando num piso de concreto, por exemplo. Uma empresa pode na prática produzir 99% das suas galinhas dentro do sistema de gaiolas e paralelamente criar uma “linha” de ovos de galinhas “criadas soltas’ e se beneficiar do marketing que isso traz. Essa falta de regulamentação, também permite que uma empresa adicione pigmentos sintéticos na ração para chegar na coloração amarelada tipicamente associada a ovos caipiras. E enquanto não houver um movimento mais consistente de produtores e de regulamentação não apenas dos ovos orgânicos (que levam em conta o bem-estar animal), mas de outros “selos” será possível que empresas mantenham suas políticas de empurrar com a barriga qualquer transformação mais profunda. 

Assim repete-se o roteiro em que empresas são capazes de se aproveitar da falta de informação do consumidor e de brechas na legislação para continuar explorando o mito idílico das galinhas felizes e criadas soltas enquanto se mantém o status quo. 

Nesse contexto, acreditamos que vale o nosso mantra aqui na Junta Local: conheça o produtor, saiba de onde vem a sua comida. Conheça quem produz na feira, e, quando possível, literalmente vá até onde se produz.

No caso das galinhas e dos ovos, temos o privilégio de poder contar na nossa comunidade com Julio Marinho e Jacqueline Gomes, da Granja d’Ouro, entre outros produtores, para abrir seu espaço de produção e trazer informações sobre a criação de galinhas. Conhecemos o casal no começo de 2018. Eles entraram em contato e através da nossa rede de informantes (leia-se os próprios produtores da Junta Local) sabíamos que eles eram responsáveis por ovos produzidos em Teresópolis que se destacavam na hora de produção de um confeito ou de um bolo e que tinham sabor excepcional. A produção deles havia começado a pouco tempo, como parte de um projeto de mudança de curso de vida que passava pela aquisição de um pequeno terreno. Julio trabalhara por anos na Petrobrás e estava pronto para uma mudança que o aproximaria de seus tempos de infância em Trajano de Moraes, onde havia sempre galinhas ciscando em volta. 

Decidiram pela produção de galinhas poedeiras e se lançaram na empreitada. Visitaram inúmeras granjas de todo tipo de reunião, e buscaram conhecimento teórico e técnico para a construção do primeiro poleiro e piquete. Mas aprenderam na prática, acompanhando o dia-a-dia e tendo a sensibilidade para entender o que garantiria mais felicidade para suas galinhas, pois o objetivo deles era produzir “aves bem criadas, que conseguem viver mais tempo, de forma natural” como nos contou Jacque.

Depois que as primeiras galinhas começaram a botar o desafio passou a ser a venda. Jacque, Julio e o filho Pedro começaram a estacionar o carro com caixinhas de galinha em algumas feiras, sempre tendo o cuidado diplomático de verificar se havia outros vendedores de ovos em cada uma. Logo começaram a receber alguns pedidos pelo Whatsapp e na primeira entrega levaram dúzias para três clientes em Niterói. Aos poucos, pela força do boca-a-boca, foram conquistando novos clientes, muitos dos quais acabavam indo visitar a granja e ganhando o direito de batizar diferentes galinhas.

A Junta Local conquistou este direito há pouco tempo atrás (mas ainda em tempos pré-pandêmicos) quando nossa equipe foi visitar Julio, Jacqueline e suas galinhas. A essa altura já eram quatro diferentes lotes de galinhas, cada uma com seu poleiro e piquete amplo, sem falar na casa dos galos. Ao caminhar e interagir com as dóceis galinhas era nítido perceber que estavam felizes. Logo uma deles se aconchegou e recebeu o nome de Scarlett. Cada poleiro possui os nichos onde as galinhas se sentem à vontade para botar, em ciclos que podem ser diários ou que podem se espaçar de acordo com a temperatura ou a idade. Não poderia haver nada mais distante das imagens tenebrosas dos documentários e vídeos de youtube. Galinhas felizes e, permitam-me acrescer, limpas e cheirosas. 

Jacque explica que se é verdade que as galinhas produzem menos e comem mais nesse cenário (pois são mais ativas), por outro lado, elas podem viver mais tempo e produzir ovos de qualidade muito superior. Ela também nos explica sobre todo o processo de muda, um período de mudanças fisiológicas em que as galinhas perdem as penas e se renovam o aparelho produtivo. Isso geralmente acontece no inverno, quando diminui a disponibilidade de comida. Nas granjas convencionais isso acontece de maneira forçada, induzindo fome e sede a níveis extremos para acelerar os processos. 

Uma das chaves da felicidade das galinhas da Granja d’Ouro é a alimentação. Além de terem estabelecido parcerias com produtores do entorno que fornecem couves, cenoura,  abóbora e outros legumes, o casal plantou pé de urucum e bananeira no entorno dos piquetes. Tudo vai pro papo enquanto a bela Scarlett e suas amigas ciscam. Um trabalho também foi desenvolvido em parceria com um veterinário para desenvolver a receita da ração complementar. Ela é preparada in loco e também faz a felicidade do plantel. A Granja d’Ouro é o extremo oposto do pesadelo do qual as protagonistas do nosso filme gostariam de fugir. 

A última parada da visita foi a área de triagem e embalagem dos ovos, também impecavelmente limpa e organizada. Seguimos para o almoço, onde nos esbaldamos na comida caseira acompanhada por omeletes feitos com ovos colhidos na hora e pudemos refletir um pouco mais. Jacque e Julio moram numa casa no mesmo terreno da Granja, o que certamente faz a diferença no acompanhamento e no cuidado das galinhas. Eles pretendem expandir a produção, entendendo o limite de onde é possível manter a escala em que é economicamente viável equilibrar felicidade de todos e produção, uma equação que passa pela necessidade de se conectar diretamente com consumidores para que eles saibam da importância do trabalho deles e também façam com que o dinheiro favoreça o modo de produção preconizado por eles.  “O que a gente faz nessa escala, reflete lá na frente” resume Jacqueline. 

A Granja d’Ouro recebe visitas, mas elas estão temporariamente suspensas durante a pandemia, pois entre seus colaboradores há uma pessoa idosa e um diabético. 
Por fim, recomendamos dois podcasts que recentemente se aprofundaram no assunto:

À espera da fuga das galinhas” –  Episódio Podcast Prato Cheio, produzido pelo O Joio e O Trigo 

Produção de ovos” com Romeu Mattos Leite – Episódio 18 do podcast Vai se Food