Por Thiago Nasser

É com enorme satisfação que anunciamos aqui na Revista da Junta Local o começo de uma parceria com o site O Joio e o Trigo. Criado em 2017, o site faz um incrível trabalho de jornalismo profundo e investigativo com base na premissa de que: a) a comida está entranhada numa teia de relações complexas – o sistema alimentar;  e b) esse sistema não vai bem – haja vista todos os problemas ambientais, sociais e econômicos que o perpassam – e precisa ser conhecido a fundo para ser transformado. Iremos periodicamente publicar por aqui textos jornalísticos produzidos pelo Joio como parte da nossa missão de trazer mais informação e esclarecimento aos nossos leitores

Além dos textos, o Joio produz um podcast, o Prato Fundo, que recomendamos muito, e faz parte do Bocado, uma rede de jornalistas especializados em toda a América Latina. E também edita livros.

O mais recente deles, “Donos do Mercado – como os grandes supermercados exploram trabalhadores, fornecedores e a sociedade”,  escrito por João Peres e Victor Matioli, representa um marco no jornalismo investigativo brasileiro, que finalmente volta sua lente para o sistema alimentar. O foco são os supermercados, a ponta de um enorme complexo que redefiniu a maneira como produzimos, distribuímos e comemos nas últimas décadas. Eles trazem informações sobre história dos grandes supermercados no Brasil, com contexto político e econômico, com o objetivo de revelar a deseducação e desconexão que o “supermercadismo” promoveu, colocando em apuros produtores, diversidade alimentar e aprofundando assimetrias sociais e de poder. Um assunto incontornável e urgente.

Inauguramos a nossa parceria com uma breve entrevista com um dos autores, João Peres, em seguida reproduzimos de um trecho do livro que relata de forma didática as dificuldades de um produtor orgânico de Paraíba do Sul, aqui pertinho, em escoar sua produção por conta das práticas insustentáveis e virtual monopólio do grandes varejistas. Ao criar centros de distribuição próprios e buscando trabalhar com atravessadores capazes de reduzir a necessidade de negociação e padronização com uma multiplicidade de produtores – como acontecia nos antigos CEASAs – os supermercados intensificaram o processo de dependência de produtores em relação a atravessadores, cortando o elo com consumidores e aumentando o poder de barganha deles. Por trás da cortina de um livre mercado a favor da população, uma série de imposições draconianas e práticas nada liberais, uma cadeia de atravessadores que se espremem sucessivamente até deixar o produtor no bagaço. O livro está disponível aqui
Estava na hora de um tema tão importante ter um jornalismo a altura. 

João Peres, um dos autores do livro.

Entrevista:

Como vocês apontam no livro, os supermercados deliberadamente se colocam como lugares anódinos, quase que como “não-lugares”. Trata-se de uma estratégia de não ser odiado e não atrair muita atenção. “Donos do Mercado” se propõe a fazer o contrário, jogar luz, mostrar a história e apontar as assimetrias e efeitos perversos de um sistema alimentar que tem como um dos pilares os supermercados, que são controlados por basicamente dois grandes conglomerados e moldam todo o setor . Como tem sido a reação das pessoas ao livro? Elas surpreendem?

O livro foi lançado há pouco tempo e, no geral, reações a livros são mais lentas que reações a podcasts, posts em redes sociais, notícias. Então, não sei se já conseguimos ver um padrão nessas reações. Daquilo que temos recebido de relatos, as pessoas se sentem surpresas com aquilo que encontram nas páginas, o que a gente já esperava, de certa maneira, porque também foi a nossa surpresa como repórteres e como integrantes da nossa sociedade. Acho que os livros, os trabalhos aprofundados também têm um poder de despertar um sentimento de gratidão, de satisfação por ter levado a reflexões.

O livro se debruça sobre dados, textos acadêmicos, mas também traz o relato de pessoas afetadas pelas questões que vocês levantam. Qual a importância de trazer essa dimensão humana para a narrativa de vocês?

Essa dimensão humana foi fundamental para entender os impactos reais do supermercadismo, especialmente no que diz respeito a fornecedores, agricultores e trabalhadores das grandes redes. Em relação aos fornecedores, a bibliografia existente era relativamente escassa, e algumas vezes naturalizava uma relação que é totalmente abusiva. Então, ouvir de um, dois, dez fornecedores sobre as taxas e as condições impostas pelos supermercados foi fundamental para desvelar essa questão. Em relação aos trabalhadores, a gente encontrava nos processos na Justiça do Trabalho vários elementos que já davam a entender que essas empresas, em particular o Grupo Pão de Açúcar, cometiam violações em massa. Então, as entrevistas com os trabalhadores acabaram dando contornos mais precisos, expressões mais claras àquelas práticas que são mais disseminadas, como a sonegação de horas extras e de adicional de insalubridade. Na hora de sensibilizar os leitores, também, existe uma grande diferença entre estatísticas e histórias humanas. A nossa impressão é de que há cada vez mais gente farta com os abusos cometidos por corporações, em especial os abusos que são fruto de um poder absurdamente desigual entre pessoas e empresas.

No fechamento do livro, vocês falam de possíveis soluções. Uma delas é a relocalização de cadeias alimentares, e atuação de administrações municipais no mapeamento e apoio a agricultores e produtores locais. Vocês observam isso acontecendo de alguma forma? Vocês acham possível que as pessoas se adaptarão a novas formas de consumo fora do supermercado?

Isso está acontecendo, sem dúvidas, mas acho que ainda existe uma dificuldade em dimensionar a escala. A minha impressão pessoal, sem comprovação com base em pesquisa, é de que a pandemia acelerou algumas mudanças nesse sentido. A necessidade de encontrar produtores próximos e a disseminação de ferramentas tecnológicas que facilitam essa intermediação podem ter crescido, mas talvez vocês tenham mais elementos do que eu para dizer se sim ou se não.

As soluções para promover circuitos curtos de consumo são muito simples, e por isso acredito que elas cresçam, em parte porque alguns segmentos da população estão muito preocupados com a epidemia de doenças crônicas, com uma tendência a valorizar alimentos frescos. Eu acho que trabalhos como o da Junta Local, e de organizações de economia solidária em centros urbanos, é fundamental nesse sentido.

Acho que a sociedade brasileira tem potencial pra ampliar e democratizar essas soluções. A nossa trajetória de combate à insegurança alimentar e nutricional, que resultou em tantas políticas públicas criativas, pode agora se encontrar com novas possibilidades criadas pela tecnologia. Veja que nessas eleições alguns candidatos já propuseram criar aplicativos públicos de entrega de alimentos, eliminando a intermediação dos aplicativos privados. Esse aspecto me parece fundamental: sem políticas públicas, essas soluções serão inerentemente desiguais, e tudo indica que nossas desigualdades já gigantescas estão se agravando nesse campo da alimentação. Nessa década, os preços dos alimentos ultra processados devem se tornar, na média, mais baixos que os preços dos alimentos in natura, o que significa condenar milhões de pessoas a viver de Miojo e salsicha. A inflação enorme dos alimentos básicos, como arroz e feijão, registrada este ano, só fará acelerar esse processo. Então, ainda que não seja por convicção, eu imagino que alguns políticos atuarão por medo da explosão social que isso pode causar. A criação de sacolões e feiras de agricultores familiares em áreas periféricas é mais uma medida barata e importante que pode ser adotada pelas administrações municipais. Isso me parece fundamental para evitar que os atacarejos, que vendem basicamente porcaria e alimentos à beira do apodrecimento, se tornem o espaço central de comercialização para as classes baixas. Esse processo está acontecendo também de forma muito acelerada. 

Trecho do livro: 

“A maior dificuldade de pequenos agricultores como Léo, mesmo dos que não produzem alimentos orgânicos, é escoar a safra. Em qualquer canto do país. Com uma produção limitada, eles não têm acesso aos supermercados e não conseguem encher caminhões para vender nas Ceasas. Não restam muitas opções: ou se organizam em cooperativas, como os produtores de Paraíba do Sul, ou ficam reféns dos atravessadores. “Sob a minha ótica de pequeno produtor orgânico e por toda história da minha família, o atravessador é um parasita, um verme que precisa ser extirpado da cadeia produtiva”, brada Léo, já cansado das histórias recorrentes de abuso protagonizadas pelos intermediários. “Ele não vem com o caminhão do supermercado. Vem com a vanzinha dele e arrasta. Oferece um valor muito abaixo do que o mercado consegue pagar. E o agricultor, que tem uma família miserável, pouca terra, não conseguiu desovar o que produziu, entrega os alimentos na mão do cara com a promessa de que na próxima semana ele paga. Mas o atravessador simplesmente não paga. Some ou dá calote, fica enrolando o produtor. Esse é o cenário de exploração.” Além dos calotes, da demora, da incerteza, Léo conta que é comum ver atravessadores enganando os agricultores mais incautos: “O cara pega, por exemplo, cem pés de couve do seu Zé e, na semana seguinte, fala ‘ó, seu Zé, vendi só trinta pés daqueles de couve, tá aqui o dinheiro dos trinta’, e morreu o assunto.”

“Os atravessadores, como esses que circulam pela zona rural de Paraíba do Sul, são só mais um elo de um sistema de distribuição de alimentos falido, equivocado e precarizado. Talvez eles sejam de fato parasitas, como Léo acredita, mas isso só acontece porque eles também são parasitados pelo próximo elo da corrente. O comprador da Ceasa de Madureira quer pagar barato nos alimentos do seu Zé. Então, aperta o atravessador. O comprador da pequena rede de supermercados de Nova Iguaçu, por sua vez, aperta o vendedor da Ceasa.

Nesse ciclo vicioso em que o mais forte aperta o mais fraco, o elo que mais sofre é o que não tem quem apertar. Dos dois reais cobrados pelo pé de couve do seu Zé no mercado de Nova Iguaçu, quanto fica com cada elo da corrente? Isso depende, mas nossos meses de observação dessa lógica de distribuição nos permitem estimar que até 50% fique com o varejista. O atravessador e o vendedor da Ceasa ficam com 20% ou 25% cada. Na melhor das hipóteses, seu Zé ficou com vinte centavos (10%). Na pior, “doou” sua produção. “E quando você cria uma cooperativa ou um grupo de produtores, os exploradores da região te olham e falam ‘porra, tu vai acabar com meu negócio?’”, Léo conta. “Mas o negócio dele é explorar o analfabeto, o sem recursos, é perpetuar esse ciclo de exploração.”

O relatório Hora de mudar, lançado pela Oxfam em 2018, ajuda a entender quais porções do total que pagamos pelos alimentos nos supermercados ficam com cada elo. No Brasil, os autores do trabalho rastrearam a cadeia do suco de laranja e descobriram uma situação crítica: os supermercados ficavam com 48,3% do valor final, enquanto os pequenos produtores recebiam algo em torno de 4%. Isso acontece, de acordo com o relatório, justamente pela necessidade que os pequenos agricultores têm de vender a produção a intermediários, que “roubam” uma fatia enorme dos rendimentos. No outro extremo da mesma cadeia, os grandes produtores de laranja, que conseguem negociar diretamente com a indústria e os supermercados, recebiam 35% do valor final, quase nove vezes mais do que os pequenos. Em nível global, segundo a organização, a fatia dos varejistas é cada vez maior, e restam aos agricultores migalhas cada vez menores.”

Livro “Donos do Mercado – Como os Grandes Supermercados exploram Trabalhadores, Fornecedores e a Sociedade”.
Autores: Victor Matioli & João Peres
Edição: Tadeu Breda
Editora Elefante