Por Thiago Nasser

Todo ano, no dia 3 de dezembro, bandeiras e gritos se unem pelo mundo inteiro para protestar contra os usos de agrotóxicos. A data remete a um incidente em que 30 mil pessoas acabaram mortas por causa do vazamento de metil isocianato, um gás tóxico usado na fabricação de pesticidas. Esse desastre aconteceu na cidade de Bhopal na Índia em 1984 e a responsável foi a empresa Union Carbide, que hoje faz parte da Dow Chemical. O saldo imediato de mortes foi de 2,2 mil pessoas. Mas o veneno que saturou o ambiente continuou matando de forma lenta e silenciosa e até hoje moradores da região lidam com o trauma. 

Ainda que pairem dúvidas sobre se o Brasil é ou não ou maior consumidor de agrotóxicos do mundo, é certo que esse debate vira quase um preciosismo técnico sem sentido diante da quantidade de veneno que é despejada nos campos e que mata silenciosamente principalmente a população rural.
O movimento da agricultura orgânica existe desde a década de 1920. (Ironicamente, um de seus fundadores, Albert Howard, se inspirou em técnicas tradicionais empregadas na Índia para sistematizar os princípios da agricultura orgânica). São muitas as técnicas empregadas, e englobam conhecimentos milenares e também de alta tecnologia. Mas a essência se resume a cuidar do solo (aliás dia 5 de dezembro é Dia do Solo – até no calendário estão juntos) para mantê-lo rico em nutrientes e buscar um cultivo diversificado que emule a natureza. É um trabalho árduo e complexo para se chegar ao “sem veneno”.

Mas foi apenas na década de 1990 que a agricultura orgânica ganhou força, puxada pela explosão da demanda de produtos que pudessem receber a alcunha de orgânico. O foco do consumo orgânico se dá muitas vezes pelo viés individual, se valendo de benefícios para a saúde pessoal. Eles certamente são importantes. Mas o dia da Luta Contra os Agrotóxicos é oportunidade para lembrar que o consumo orgânico deve despertar uma consciência que vai muito além disso.

Fazemos nosso chamado trazendo aqui imagens de uma recente visita ao distrito do Brejal, pioneiro da agricultura orgânica no Rio de Janeiro, onde conhecemos o trabalho de plantio e distribuição do Sítio Cachoeira, ajuntados que participam do Circuito de Feiras Orgânicas e da Sacola da Junta, e seu parceiros. Guiados pelo casal Oneias e Luciene conhecemos alguns punhados de terra onde agricultores cuidam e guardam os segredos da terra.

Na Fazenda Cafundó conhecemos Antônio Paulo que cuida de fileiras multicoloridas de alfaces, radicchios, beringelas, rabanetes e couves. Ele nos contou, com gosto, que os aprendizados trazidos por agrônomos é útil, mas saber a ordem das fileiras, o momento de plantar é “algo que só eu sei, conheço cada palmo desta terra”.  Atravessamos as fileiras admirando o viço das folhas e afundando os pés no solo escuro, húmido e fofo. Luciene puxa do solo um enorme radicchio, de folhas rajadas, do tamanho de um repolho. “Às vezes chegamos na feira e o pessoal não acredita que é orgânico. As pessoas acham que tem que ser pequeno, cheio de pinta de bicho.” Chegamos no mudário, onde sementes viram brotos sob a proteção de telas antes de seguirem para o campo. De longe avistamos, homens e mulheres, enxadas na mão, em silêncio.

Depois conhecemos o Sr. Levir, irmão de Oneias, que se auto-intitula “referência no estado”. Bastam alguns minutos para entender o porquê. Para o olhar não acostumado o que se vê é uma plantação variada no meio da mata. No olhar dele, uma farmacopéia lisérgica de bichos, plantas, cheiros e entidades que interagem e constituem uma unicidade. Ele chuta um punhado de terra. É um formigueiro. “Ó, se tem ovo em cima é que vai chover, hora boa pra `semiá´”. Ele cata uma batatinha do chão. “Tá vendo? Eu pego isso aqui deixo pegar lua, a casca vai ficar verde aí pode plantar, a batata desse jeito se defende sozinha, você acha que vou comprar semente?”. Ele traz à mão um punhado de terra. “Sente o cheiro de pó de café. Essa terra tá boa”. Ele aponta para uma bouganvillea. “Você coloca as flores na água, deixa uns dias, coloca cinza, bosta e fica muito bom pra adubar e proteger, vieram uns técnicos aqui pesquisar”. E assim seguimos o seu passo lépido e fala rápida que vai despejando num ritmo estonteante pílulas de conhecimento e a vivência de quem trabalha naquele universo contido em um pedacinho de terra há mais de 40 anos. A vontade é de sentar com ele abrir uma água “marvada” e deixar o gravador aberto e continuar ouvindo. Mas precisamos voltar.

Nossa homenagem e agradecimento a Oneias, Luciene, Levir, Antônio e todos os agricultores e agricultoras que usam diariamente suas enxadas e sabedoria na luta contra os agrotóxicos.