Por Alice Lutz
“Dou respeito às coisas desimportantes.
E aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais do que aviões.
Prezo a velocidade das tartarugas mais do que a dos misseis.
Tenho em mim esse atraso de nascença. Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso. Meu quintal é maior que o mundo.”
(Trecho de “O Apanhador de desperdícios” – Meu quintal é maior que o mundo – Manoel de Barros).
Nos tempos difíceis que correm, em que as chamas ardem, busco Manoel de Barros, por quem tenho apreço gigante e em minha vida é grande responsável por primaveras constantes.
Mais do que flores, a primavera me parece ser o ápice dessa energia de resiliência infinita contida pelas plantas. Elas trazem em suas entranhas a força de multiplicação de tudo que na terra vive. É momento de brotar, trazer a tona essa potência. Como colocado por Emanuele Coccia, em sua A vida das Plantas – Uma metafísica da Mistura, essa força é capaz de insinuar novos caminhos:
“Fixar-se na superfície da Terra para melhor penetrar o ar e o chão. Amarrar-se a um ponto aleatório para depois se expor e se abrir a tudo o que está no mundo circundante, sem distinção de forma ou natureza. Nunca se deslocar para melhor permitir ao mundo se engolfar em seu seio. Nunca se cansar de construir canais, abrir buracos para que o mundo possa cair, escorregar, se insinuar em si.”
Nos últimos meses caminhei muito, mesmo, tal qual uma planta, me percebendo mais parada, ou enraizada numa terra, que nunca. Ver a flor se abrir feito sedução, liberar perfumes, espalhar aromas, dançar com o vento, me lembro do sexo. A planta se enfeita dela mesma para receber visita de agentes e assim multiplicar o brotar, e ela não faz distinção.
Vejo um Pinheiro enamorado por uma Congéia e os dois juntos trepados por uma Bougainville. Sinto a maciez das folhas, meus pés nus sobre pétalas caídas. O rubor dos talos de beterraba cintilam na água enquanto os lavo.
Estudar e viver próxima às plantas me fez despertar e me ensinou que a primavera significa um despertar também da consciência, tendo como guia a natureza que mostra ser indivíduo, inseparável do todo.
Seria isso a primavera? Mais uma chance que voa no ar, como o desejo de polinizar e florir para fazer do chão o que deseja brotar, talvez seja o momento de impulso a mudança. Impulso que vem do frio e deseja a chuva quente do verão. E que deve ser compreendido não apenas com a beleza da força do mundo vegetal em sobreviver e se exibir em flor. Mas em especial e mais urgente, nas ações humanas que reconhece a inútil divisão criada entre ser humano e natureza, e ainda mais a equivocada sensação de domínio humano sobre a natureza. Se tem alguém que domina alguma coisa aqui esse alguém é a natureza. Em meio ao fogo criminoso que destrói o que nos mantém vivos, o desafio é replantar o futuro baseado em cooperação e comunhão.
Você já parou para pensar o quanto as plantas vem lutando para sobreviver desde o momento que começaram a existir? Estamos falando de uma batalha de mais de 500 milhões de anos. E que quando somada à presença humana, principalmente do homem moderno, muito provavelmente, passou a ser uma das guerras mais árduas de toda existência. Estamos perdendo a nossa batalha dentro de um período muito mais curto por termos tido a soberba de pensar que nós somos o planeta e a natureza. Essa dicotomia precisa ser superada para que não continuemos no caminho da morte, como coloca Daniel Christian Wahl, em outro texto em que me inspiro para falar do que podemos aprender com as plantas: “Mesmo dedicando nossas vidas à criação de culturas regenerativas e um futuro mais sustentável, não estamos ”salvando o planeta” ou “salvando a terra”. Ambos continuarão por muito tempo depois que nossa espécie encontrar o quase inevitável destino da extinção. No entanto, não temos que acelerar nossa própria morte, como nos esforçamos cada vez mais desde a Revolução industrial.” (Design de culturas regenerativas)
Não existe solidão. Não existe silêncio no mundo vegetal. O que compreendemos por escuridão parece não ter vez. Quando o dia já parece envelhecido e o sol se revela lua, outras flores desabrocham. Mesmo no subterrâneo plantas se falam e encontram o movimento em raízes. Trabalham incessantemente para existir e assim nos proporcionar vida.
É tempo de animar a vista. Trazer almas à vista. Diante dessa exuberância de almas animadas em flor, a reflexão sobre nosso consumo se aplica mais do que nunca ao prato. O quanto consumimos e valorizamos a nossa biodiversidade? Se dela pouco conhecemos quem dirá consumimos. Quando falamos em biodiversidade parece algo distante de nós. Mas é importante que passemos a relativizar a distância e entendamos o quanto por muitas vezes a falta de conhecimento nos põe afastados. Nosso quintal é maior que o mundo, afinal.
Ao escolhemos colocar no prato uma variedade mínima de alimentos, viramos às costas à biodiversidade que a humanidade destrói. Mas ela pode resistir, seja na terra arrasada ou nas nossas consciências. Estamos falando das, ainda bem, já famosas PANCs – as plantas alimentícias não convencionais, das variedades de grãos e frutas, de toda riqueza do mundo vegetal.
Estima-se que tenhamos uma média de 300 mil espécies vegetais no planeta, destas 10% com potencial alimentício. Nessa multidão de 30 mil espécies algo em torno de 10 mil são nativas do Brasil. Cabe aqui a reflexão do quanto valorizamos essa variedade em nosso prato. Quantas hortaliças brasileiras você conhece? Quantas folhas e flores comestíveis você conhece? E muitas estão bem ali, no sopé das partes altas da Floresta da Tijuca, num canteiro esquecido de praça.
Muitas são espontâneas, estão junto aos povos originários, nos terreiros de umbanda e candomblé. Bordam história de Brasil nos pés de pitanga do quintal da vó ou na moita de cabeludinha da casa da tia. Podem também estar na salada de azedinha daquela sua outra tia. Pode-se ainda tudo enfeitar com folhas e flores de capuchinha do vaso que tem ao lado, e no prato que logo antes era mato, tudo se come. Está lá, bem mais próximo do barro do chão, que mesmo asfaltado nas cidades ainda se permite brotar nas encostas. Andar pelas ruas da cidade com quem as reconhece por corpo e nome é em canteiros e bordas dançar com a serendipidade do mundo vegetal.
Refletir sobre isso tem a ver com salvar nossa história cultural. Tem a ver com estimular o que brota e floresce espontaneamente em nosso quintal. Tem a ver com a Primavera.
Por sorte o movimento de resgate e regeneração desta cultura e sabedoria ancestral vem recebendo amor e companheirismo de muitos agentes, e vem sendo trabalhado lindamente, seja em projetos como Organicidade da minha xará Alice Workman ou nas belas colheitas da querida Fátima e seus orgânicos floridos em broto. Ou em páginas de livro, como no sempre exímio trabalho do mestre Harri Lorenzi em parceria com o mestre das PANCS Valdely Kinupp.
Tudo isso me faz acreditar que existe amanhã e que devemos prestar serviço a ele.
Ainda que incapaz de encontrar qualquer compreensão no fogo planejado da humanidade. A flecha certeira que me invade revela a oportunidade ainda um tanto desconhecida de ser primavera e tornar constante o florescer junto ao mundo vegetal.
Sempre será tempo de celebrar a primavera.
Fotos acima também por Alice Lutz