Texto por Guilherme Mattoso
Há seis anos, quando decidiu lançar um blog, o sociólogo Carlos Alberto Dória não imaginou que os seus escritos poderiam ter tanto alcance e repercussão. Mesmo sem receitas ou fotos sedutoras, o E-Boca Livre tornou-se referência no universo gastronômico, graças ao tom altamente polêmico e ácido de suas crônicas, que versam sobre temas que estão em voga nos cadernos de gastronomia e também sobre os bastidores dos restaurantes, a indústria alimentar e a cultura culinária brasileira, entre outros assuntos.
Leia também a resenha do livro “Formação da Culinária Brasileira”.
Com o passar do tempo, e quase mil posts depois, Dória percebeu que o blog, além de servir como repositório para as suas ideias e reflexões, transformou-se também em fonte de pesquisa para muita gente interessada em gastronomia e culinária, em busca de informações que vão além das famigeradas receitas ou críticas de restaurantes. Esse foi o pontapé inicial que o motivou a compilar suas resenhas em um livro, batizado de E-Boca Livre, lançado no ano passado pela editora Tapioca.
“Embora eles tenham sido escritos quase todos ‘no calor da hora’, como reação a algum estímulo externo (uma notícia, um evento, uma observação direta, uma conversa com chefs de cozinha etc.) ou interno (uma pensata qualquer, no meio da noite), há coisas que parecem ter um sentido mais permanente e, por isso, estão aqui”, explica o autor na apresentação da obra, que conta com ilustrações muito bem humoradas do jovem chargista e ilustrador João Montanaro.
E-Boca Livre reúne quase duzentos posts e também outros textos que não vieram do blog, como os artigos escritos para as revistas Trópico e SelecT, além de uma entrevista com o chef espanhol Ferran Adrià, publicada na finada Bravo!. Divididos em oito capítulos, os textos foram agrupados em temas, como “Chefs, chefinhos e chefetes”, “Crítica da crítica” e “Ingredientes, receitas e dicas”. Para deleite dos leitores, o estilo sem papas na língua, embasado em um conhecimento de causa absurdo, está presente do início ao fim do livro.
“Copiamos modificando, mas achamos que copiamos autenticamente; comemos em países imaginários e somos pobres em variedade, visto o mundo em sua amplidão, mas achamos que, internamente, contemos o mundo. Somos os provincianos mais universalistas, ou os metropolitanos mais provincianos”, destila Dória em “O provincianismo universalista do paulistano”, jogando um balde de água fria nos entusiastas que enxergam São Paulo como uma babel gastronômica, como Nova Iorque ou Londres.
Já em “O papel da crítica em gastronomia”, o autor questiona o modus operandi do crítico moderno e lança luzes sobre a real relevância deste profissional. “Mas por que vou abrir mão da minha subjetividade em favor da subjetividade de um terceiro? […] Mas há o crítico de cultura alimentar ou gastronômica. Esse é mais raro e o que ele nos fornece são coordenadas para nos movermos livremente entre os desafios de um mundo empírico, concreto, que é bem maior do que as experiências que pessoalmente podemos acumular”.
Em “O hambúrguer das cavalgaduras”, originalmente publicado no Jornal O Estado de S. Paulo, Dória também reflete sobre a crise da indústria alimentícia, no que chama de “angústia alimentar moderna”, ou seja, a certeza de que não sabemos o que comemos hoje em dia. Ele nos faz repensar sobre como chegamos até aqui e aponta possíveis saídas para reverter esse cenário tenebroso no que diz respeito à qualidade da nossa alimentação.
“Que defesa pode haver contra isso? Seguramente um impulso grande em direção à comida de ‘terroir‘, ao ‘locavorismo’ e outras propostas que aproximam o consumidor do universo dos produtores”, sugere. E, por fim, ainda afirma que “a indústria, infelizmente, não merece a confiança cega que nela depositamos há séculos quando nos prometia um futuro radioso. Uma ruralidade mais próxima – ainda que meramente alimentar – poderá avançar nos interstícios de um mundo que se quer pós-moderno”.
Seria possível reproduzir mais outros tantos trechos valiosos deste livro, mas deixo aqui apenas um aperitivo de uma obra que propicia a reflexão crítica e uma tomada de consciência sobre o ato de comer que, como sabemos, envolve um universo de variáveis que vai muito além do que é simplesmente servido em nossos pratos. Que venham mais posts! E vida longa ao E-Boca Livre e suas crônicas cáusticas, mas cheias de bom-humor e muita informação qualificada para quem tem fome e sede de saber.