A segunda temporada da série Chef’s Table, do Netflix, acaba de estrear, o que para muitos significa horas assistindo compulsivamente a todos os episódios da série de uma vez (para alguns, na tela minúscula de um laptop, agravando a miopia, mas isso não vem ao caso). A série tem recebido elogios pela sua qualidade cinematográfica e por oferecer retratos de chefs renomados em que história (e drama) pessoal se entrelaça com o estilo que cada um desenvolve na cozinha. Certamente também, ela se vale do zeitgeist foodie e da tendência de elevar chefs ao patamar de ícones pop.

Como Francis Malmann na primeira temporada, dos chefs retratados nessa segunda temporada, talvez nenhum se preste tão bem a esse papel como Alex Atala. Ex-punk, ex-pintor de paredes, caçador, pescador, “homem mais interessante do mundo“, galinocida, chef-proprietário do “nono melhor restaurante do mundo”, e, finalmente, garoto-propaganda do café em cápsulas três, o semblante estatuesco de Atala e seu jeito bad boy (tatuagens, bis pro galinocídio, baforadas de um cigarro de maconha, ai que meda!), funcionam bem na tela, seja com ele desbravando a selva, fatiando uma tora de pupunha, pescando em alto-mar ou, torso-nu, assando um peixe em uma fogueira com a chama saída de sua barba ruiva, em uma praia fluvial com um pôr do sol cintilante ao fundo.

A narrativa se constrói – metaforicamente, inclusive – como um círculo: a de um homem que, por ser muito diferente, foge da sua terra natal para a Europa apenas para voltar, se reencontrar e encarnar a brasilidade em todo seu fulgor gastronômico. Esse retorno atinge também o ciclo dos ingredientes nativos que Atala recolocou no mapa gastronômico graças ao seu trabalho no DOM: a pimenta Baniwa, a formiga, mel de abelhas nativas, PANCs (plantas alimentícias não convencionais) da Mata Atlântica, a pupunha e por aí vai. O enredo rende momentos poéticos: assim como a flor é o momento-auge do ciclo de uma planta, o ingrediente pelas mãos do chef chega no topo quando aproveitado no prato do comensal, sublinhando o papel do chef como intermediador entre a natureza e a cultura. Os cortes cinematográficos perfazem de forma sublime o caminho entre o campo ou o mato e o prato.

De fato, passamos muito menos tempo na cozinha de Atala do que “no campo” ou “no mato”, o que é bem interessante. Podemos perceber também alguns momentos constrangedores, como quando Atala diz que seu objetivo na cozinha não é fazer comida saborosa, mas sim fazer com que as pessoas digam “UAU!”. Narcisa Tamborindéguy deve ser habitué do DOM. A tentativa de dar crédito a Atala por ter recolocado a comida proletária brasileira como arroz, feijão e bife no cardápio dos restaurantes finos é pífia e só vai enganar gringo ou paulistano que topar pagar 200 reais para comer isso nos restaurantes dele.

O fato é que – ame-o ou não – Atala, com toda controvérsia que sua figura pode incitar, indiscutivelmente representa um papel fundamental no processo de recriação da gastronomia brasileira e na relação com os pequenos produtores. Uma bonita fala no episódio é emblemática desse espírito: “Se quisermos comida incrível com ingredientes maravilhosos, para achar esses ingredientes temos que achar outra pessoa que os ame tanto quanto eu”. Nesse sentido se vê o potencial positivo dos chef-celebridades enquanto formadores de opinião e conscientizadores. Portanto, muito obrigado, Alex.

Mas são muitas as críticas cabíveis e as reflexões que elas suscitam. No caso específico de Atala, sua busca pelo nativo – o que não significa igual a local – começou pela Amazônia e foi o que o colocou no mapa, como o próprio admite, referindo-se ao Madrid Fusion em que recebeu a benção de Ferran Adrià pelo seu trabalho com o “terroir amazônico”. A partir daí, sua cozinha se definiu pela reapresentação de ingredientes “exóticos” e questionamento da formação cultural do gosto. Assim, porque seria o tucupi menos nobre ou mais exótico que o caviar? A pergunta, extremamente válida, está na base do que todo chef brasileiro se propõe a fazer hoje em dia (ok, obrigado de novo, Alex). Mas a tarefa de redefinir a gastronomia brasileira e recriar a cadeia produtiva é mais complexa do que a própria trajetória de Atala contada em Chef’s Table sugere.

Sua tentativa de ativar uma economia local na região da tribo indígena Baniwa começa com um tropeço típico do olhar do “homem branco forasteiro” que compensa o trabalho dos índios com comida processada e plastificada da cidade grande. A atração pela Amazônia, embora esteticamente interessante, coloca também a questão do local. Por que um chef de São Paulo teria que trazer pirarucus, formigas e pimentas de avião quando há uma miríade de outros produtos locais disponíveis? Há uma valorização excessiva do pseudoexótico que certamente deve ser boa para convencer endinheirados a gastarem seu “tutu” no tutu do DOM. A história pessoal de Atala, que na infância viajava para o Pantanal e Amazônia para  pescar, é apenas parte da explicação. O que está por trás também dessa construção limitada do olhar – inicialmente voltado exclusivamente para o exótico amazônico – e seu sucesso foi a possibilidade de reconfigurar a face da gastronomia “brasileira” de um modo mais impactante e identificável para o olhar estrangeiro, que facilmente equaciona o Brasil com a Amazônia, com a selva, com o índio. De certa forma, repetiu-se o script da necessidade de obter reconhecimento alhures para ser reconhecido em casa. Passado esse momento, nosso Indiana Jones, poderia se voltar a outros terroirs menos distantes e o desafio passaria a ser a viabilidade econômica dessa nova cadeia.

O foco de Atala em suas iniciativas com produtores é sintomática dessa dificuldade de tornar essa rede sustentável do ponto de vista econômico, enquanto não se cria uma cultura gastronômica que privilegia o local e, logo, um mercado consumidor consistente. Ainda dependemos dos chefs-celebridades aventureiros para fomentar nossa cultura de comida local? Até que ponto é possível conciliar as contradições do corporativismo (quantos chefs viram garotos-propaganda do que há de pior na indústria alimentícia?), da planilha de custos alta de restaurantes finos com a necessidade de pagar bem pequenos produtores e da nossa dependência em chefs para valorizar nossa comida?

Bom Netflix a todos.