Se os chefs são os novos rockstars, o MAD, simpósio anual sobre comida realizado em Copenhagen, seria o Coachella do mundo gastronômico. Outra analogia rasteira: considerando o papel dos chefs como ativistas políticos, o MAD, que também significa “comida” em dinamarquês, seria uma espécie de encontro de cúpula. O line-up dos chefs convidados desde sua primeira edição em 2011 é um verdadeiro mosaico de nomes consagrados e estrelas ascendentes de um mundo culinário cada vez mais relevante e midiatizado culturalmente. (A capa da famosa revista Time, que marca a conversão de chefs em marcas globais, traz a foto do trio Alex Atala, David Chang e René Redzepi. Por acaso, os três são os principais curadores e presenças constantes do MAD.)

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No entanto, a missão do MAD vai além da consagração. O propósito é usar o poder de conhecimento e a visibilidade dessa constelação para disseminar ideias, criar redes, discutir problemas comuns e assim, anualmente, moldar os rumos de uma cultura gastronômica que pretende incluir a ética, a justiça e a sustentabilidade como valores.

O tema discutido em 2016 foi A Cozinha do Amanhã e a Junta Local quis estar presente para testemunhar o “show” e se inspirar. Felizmente, fomos selecionados como um dos 350 participantes (foram mais de 1.500 propostas) de 43 países, e aqui vamos contar um pouco sobre a experiência.*

O evento
O MAD aconteceu no final de agosto, em uma parte descampada de Copenhagen. Para chegar lá foi preciso pegar um típico kanalrundfart.

Chegando lá, nada de tapete vermelho. Apenas uma enorme tenda com outras menores cercadas por feno. Ao contrário dos anos anteriores – em que foi seguido um formato no estilo do TED, com grandes palestras e pouca interação –, este ano o número de palestras diminuiu e foram criados os workshops temáticos e participativos, e por isso a tenda mãe teve “filhos”.

36_mad-1Fomos recepcionados por René Redzepi, que apertou a mão de cada um que chegava. Sua mão, aliás, é a principal influência por trás do evento. Redzepi representa uma nova geração de chefs que busca se distanciar da figura do ditador da cozinha que espera de seu batalhão total dedicação e, consequentemente, nenhuma qualidade de vida. Mais que isso, o NOMA, restaurante criado por ele, representa a relação da cozinha com o mundo, seja no tratamento dos ingredientes locais e nativos ou na busca da ética e da cooperação – e não a competição – com outras cozinhas – traços da personalidade de Redzepi que estão profundamente ligados ao ethos dinamarquês de simplicidade (hygge) e humildade (a Lei de Jante). Isso faz com que o MAD destoe de outros eventos gastronômicos, o que se percebe em sua própria montagem: mesas comunitárias, informalidade, inexistência das áreas VIP…

Primeiro dia de palestras
Foram muitas as palestras, mas algumas ficaram na memória.

Jacques Pépin
Coerente com o tom de simplicidade, o evento começou com Jacques Pépin falando e, simultaneamente, demonstrando a importância da técnica. Saber fazer uma omelete, desossar um frango, por exemplo, são práticas fundamentais que devem ser repetidas à exaustão até chegar à perfeição. O seu domínio precede a criatividade e o conhecimento culinário é uma tradição que se passa oralmente e através dos gestos. A técnica, ensinou Pépin enquanto executava um perfeito galantine, é a ponte entre o passado e o futuro na cozinha.

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Veja a “aula” de Pépin no MAD.

Trevor Gulliver
Ele não é chef, mas sim o investidor por trás do St. John’s, restaurante que revolucionou a comida inglesa nos anos 90 e pioneiro do movimento de aproveitamento do focinho ao rabo dos animais na cozinha. O mais impressionante é que o St. John’s ainda existe, com mais de duas décadas, em uma cena gastronômica refém de modismos. A principal lição de Trevor Gulliver é surpreendente por vir de um investidor: “Esqueça as mídias sociais, esqueça a propaganda. Se a comida for boa, feita com rigor, os clientes virão e trarão outros clientes. Não existe propaganda melhor e mais verdadeira no mundo da comida”. Foi também enfatizada a importância de fazer compras de produtores locais. Segundo Gulliver: “Comprar [produtos] locais irá desafiar o sistema alimentar, melhorar a qualidade da sua vida e do ambiente que você vive”.

Eric Archambeau
A revolução do mundo da comida não pertence apenas a chefs e cozinheiros, existem investidores como Eric Archambeau que empenham capital em ideias que estão mudando a comida do nível micro (avanços em biotecnologia e botânica) ao macro (técnicas agrícolas e novas formas de distribuição de alimentos em circuitos curtos). Chefs e restaurantes possuem um papel especial dentro dessa revolução – engenheiros e técnicos podem achar boas soluções, mas são os chefs que as tornam parte do tecido social e cultural. Nesse sentido, eles são os guardiões das premissas da revolução da comida, com seu talento ajudando a lançar brilho sobre bons produtos, principalmente vegetais, inspirando os jovens e sempre estimulando um senso de fascinação perante a natureza.

Segundo dia de palestras
O segundo dia começou em um tom bem-humorado. Jair Tellez e Rafael Magaña contaram entre uma dose e outra de mezcal como criaram o Laja no México, um restaurante de propriedade familiar. O humor foi tão certeiro que dispensou o trabalho da tradutora. Veja.

Outro destaque do dia foi a presença marcante de Carlo Petrini, fundador da Slow Food. A mensagem de Petrini é bem conhecida, mas é impressionante a sua capacidade de transmiti-la com tanta paixão. No MAD ele fez um chamado para que cozinheiros se façam cidadãos e transformem todo o vocabulário do mundo da gastronomia: no lugar de eficiência, deve-se buscar a lealdade, ou seja, não se deve trocar o produtor quando surgir outro com preço melhor. No lugar da liderança, o carisma. No lugar da competitividade, a colaboração e fraternidade. Em suma, para Petrini a compaixão é uma forma prática de amor, e ela deve transparecer na cozinha do amanhã.

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Worskhops
Apesar da dificuldade para escolher entre tantas opções, a Junta Local conseguiu estar presente em três workshops que têm tudo a ver com nosso trabalho: “Como tornar Fazendeiros Estrelas”, “Política na Cozinha” e “A Crítica da Crítica” – sobre o papel de críticos de gastronomia e da imprensa. Destacamos aqui as duas primeiras.

A primeira sessão temática foi dirigida por um historiador e um chef que são donos de uma boutique em Copenhaguen chamada Kost. Apontando que o próprio terreno onde o MAD estava acontecendo já havia sido um local de cultivo de batatas, eles fizeram uma análise da desvalorização dos agricultores dinamarqueses (o problema acontece em todo mundo, não apenas aqui no Brasil). O cultivo de ingredientes sazonais e orgânicos, dentro da atual estrutura de incentivos econômicos e políticos, sempre será mais caro. O grupo, que incluía agricultores locais e mexicanos, chefs, um jornalista gastronômico russo e um consultor de carne de caça, traçou de forma coletiva diversas estratégias de valorizar o trabalho de pequenos agricultores. Em comum, todos apontaram a importância de valorizar a história de cada produtor com humor e inteligência para alçar fazendeiros à condição de “estrelas”.

O workshop sobre “Política na Cozinha” foi liderado por Mitchell Davis, presidente da James Beard Foundation, e Johanna Mendelson, criadora do Conflict Cuisine, e abordou dois tópicos principais: como politizar mais as cozinhas e a sua relação com os refugiados e imigrantes. O debate foi intenso, com visões de pessoas do mundo inteiro. Uma das principais conclusões foi de que o significado de boa comida deve ser democratizado e definido comunitariamente, e que não é necessária a criação de um espetáculo gastronômico para isso acontecer.

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A comida e os bastidores
Como em toda conferência e congêneres, as principais trocas geralmente acontecem nos intervalos. E no MAD esses intervalos não podiam deixar de contar com boa comida e bebida. Em ambos os dias, logo na chegada, éramos saudados por uma mesa farta com pães e viennoiseries da Lagkagehuset, e um incrível congee feito pelo coletivo Tigermom. Para acompanhar, uma seleção de cafés preparados com diferentes técnicas por baristas de diversos cafés da cidade, entre os quais o Coffe Collective. No almoço, peixes, vieiras e cabeças de camarão vindo da Noruega e preparados pelo time do Maaemo. Tudo farto e servido sem frescura nas mesas comunitárias, onde foi possível conhecer gente do mundo inteiro.36_mad-5

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A Junta Local, por acaso, sentou-se numa mesa com Kavita Meelu, inglesa radicada em Berlin responsável pela curadoria de comida de rua de um dos mercados mais vibrantes de Berlin, o Neue Markt Halle e também Steffi Rothenhoefer, do The Foods Entrepreneurs Club, especializada no apoio de pequenos produtores na Alemanha. Não poderia ter havido coincidência melhor, não? Ah! E não faltou hidratação à base de refrigerantes artesanais e naturais, e cervejas da Mikkeller, sediada do outro lado do rio.

O simpósio acabou com as seguintes palavras de Redzepi que resumem também o nosso sentimento: “Se você quer ir rápido, vá sozinho. Se você quer chegar longe, vá junto”. René, muito obrigado. Tamo junto. Até ano que vem.

*A participação no MAD 5 foi possível graças aos recursos do Rio Criativo.

Crédito das fotos: Rasmus Malmstrøm