Por Thiago Nasser
Algumas semanas atrás, parte da nossa equipe se juntou para conhecer de perto o pedacinho de terra encravado no Alto da Boa Vista que abriga as estufas e hortas da Orgânicos da Fátima. É de lá que saem boa parte dos brotos, flores, PANCs e verduras não apenas para a Sacola e feiras da Junta, mas também para muitas mesas dos bons restaurantes da cidade. São cultivados sob a batuta de Fátima Anselmo, pioneira da agricultura orgânica no Rio de Janeiro. E como era começo da primavera, estávamos curiosos também para saber de que forma a mudança de estação estava se manifestando na natureza.
A visita também representava uma primeira visita depois de meses de confinamento, o que conferiu um toque de surrealidade à excursão. De repente nos vimos cercados pelos sons e cheiros da natureza, ainda que a pele desbotada e máscaras servissem de lembrete da realidade. A pandemia nos privou não apenas do contato nas feiras, mas também da possibilidade de ir até onde se cultiva, cria e produz. Sabemos que é na roça, na cozinha ou na pequena fábrica que se conhece de fato a produtora – é lá onde tudo clica e faz sentido. Era grande a vontade de voltar a fazer isso. E com o convite da Fátima pudemos realizar isso sem a necessidade de longos deslocamentos e com a segurança do ar livre.
O terreno fica numa antiga pedreira desativada, mas ainda ocupada por uma marmoraria. De lá se entrevê o mar e o comecinho da Barra da Tijuca. Fomos recebidos por Fátima num galpão onde acontece a separação e despacho de produtos e que sedia o escritório da empreitada, que além da produção passou a abarcar também a composição e venda de cestas para clientes por causa da pandemia: “Em poucos meses tivemos que mudar todo nosso processo, fiz várias parcerias com agricultores que ficaram sem feiras e montei um esquema de cestas e estamos entregando bastante, nos salvou,” explica Fátima exemplificando a rede de solidariedade e reinvenção que se formou entre os muitos atores do nosso sistema alimentar local, que vai do pequeno agricultor ao chef renomado. Aliás, alguns chefs tiveram e ainda possuem grande significado para ela. Claude Troisgros foi um dos grandes incentivadores que fez com que ela optasse pela vida no campo e que também estendeu sua mão quando toda sua produção foi destruída nas enxurradas que afetaram toda Serra Fluminense em 2011. Foi a catástrofe que fez com que a Fátima procurasse um espaço de produção na Zona Oeste e a levou para o espaço no Alto da Boa Vista. Outra grande apoiadora e parceira é a chef Roberta Sudbrack, que Fátima cita no momento de falar sobre como ela também se tornou num ponto de apoio para muitos: “Como a Roberta sempre fala, a gente não pode soltar a mão de ninguém, a gente manteve toda nossa equipe apesar da dificuldade, muita gente que veio do Nordeste, que aprendeu a trabalhar com a terra, a gente não pode perder isso”. São 19 famílias que a produção da Orgânicos da Fátima ajuda a sustentar e atravessar a pandemia.
Sua própria família faz parte da empreitada. Helena, sua irmã é presença constante nas feiras e auxilia na produção e venda das cestas, enquanto os filhos Gabriel e Samuel ajudam na parte administrativa em paralelo aos cursos na universidade. Apesar de hoje viverem na cidade, ela se orgulha do aprendizado que tiveram desde os dias de roça no Brejal. “Fiz esse trabalho com meus filhos, e hoje eles trabalham comigo, um faz Direito e o outro faz Publicidade, mas eles trabalham com a terra, adoram isso.”
Do galpão fomos conhecer as estufas. São três enormes estruturas metálicas cobertas por telas que abrigam as bandejas de onde brotam as tenras folhas de coentro, beterrabas, manjericão, cerefólio, manjericão, girassol e rúcula. Muito valorizados por seu efeito estético na finalização de pratos, o certo é que cada broto é uma micro-dose concentrada de sabor, o que incita a muitos, inclusive o autor deste texto, a se comportar como se estivesse num grande buffet de salada. Ao lado das estufas, um galpão menor, onde acontece todo manejo desta micro-cadeia: da preparação da terra e plantio das sementes, à limpeza e embalagem. É lá também que acontece, mediante hábeis tesouradas que vão desbastando os brotos crescidos, a “colheita”.
O tour prossegue pela horta que rodeia as estufas. Se nas estufas o cultivo segue uma lógica cartesiana, o emaranhado de arbustos e plantas representa seu oposto diametral. É possível que sem Fátima guiando tudo fosse confundido com mato. Mas o caos e aparente desleixo são impressões falsas: “A gente mantém o mato porque essa biodiversidade é que dá o equilíbrio, tem mato que a gente mantém aqui porque quando os bichos chegam na parte plantada já mataram a fome” ensina Fátima. E com o olhar guiado pelo dela vamos descobrindo as “pérolas” escondidas: mostarda roxa, flor de mel, tomatinhos selvagens, abóbora, ora-pro-nóbis, girassol e uma coleção de pequenas flores. “Tem flor que nasce na primavera, que gostam do calor, tem outras não, cada uma tem seu tempo”, diz Fátima, desconstruindo sem cerimônia a noção importada da primavera das flores.
De lá nos dirigimos a outro lote de terra, localizado mais perto à estrada. Os planos para o futuro de Fátima estão centrados em torno de uma antiga casa de veraneio, que ela chama de “minha fazendinha urbana, meu santuário”. Dentre os planos estão transferir suas estufas e também plantar outras variedades em campos que já vinham sendo limpados para receber feijão e brócolis. Mas depois de tanto tempo em contato com a terra e agricultura, Fátima sabe que sua missão não se limita a isso. “Vai ter cozinha, vai ter atividade, vamos ensinar as pessoas a plantar, ensinar os jovens a se apaixonar pela agricultura, quem vai vir depois de mim? Vai ter agrofloresta, vai ter eventos com chefs, tudo voltado à pessoa se apaixonar pela agricultura. Se a gente não vai se apaixonar pela terra o mundo vai virar uma loucura.”
Apenas vinte minutos separam a Zona Sul do espaço de Fátima. Recomendamos a visita para renovar a esperança de que um mundo menos louco não está tão distante.
Orgânicos da Fátima
Estrada de Furnas, 3820, Itanhangá, RJ.
(21) 99021-3065