Introdução e entrevista por Thiago Nasser

Estamos desde março ocupando um galpão na Gamboa e sonhando com um “futuro mercado local” – mote da nossa campanha na Benfeitoria. Parte desse sonho (ou delírio, se preferirem) consiste na possibilidade de estarmos de alguma forma dando continuidade à linhagem interrompida de mercados centralmente localizados no Rio de Janeiro, lugares repletos de vida e de extrema importância não apenas para o fornecimento de comida, mas para as pessoas que habitam ao seu entorno e ali trabalham, se alimentam e vivem. Mercado da Candelária, Mercado da Praça XV… mercados de um tempo em que não era necessário acrescentar o adjetivo “local”. É normal para nós, que estamos sempre na lida e na rua com as nossas barracas, que nosso imaginário seja populado por estes tempos e mercados. Um dos nossos objetivos da campanha era compartilhar esta história esquecida da cidade. Tão esquecida que recentemente nos surpreendemos com o fato, até então desconhecido por nós mesmos, que já houve, em fins do século XIX, um mercado na Praça da Harmonia, exatamente em frente ao nosso endereço atual.

A nossa presença na Gamboa e o sonho do mercado tem se transformado também, portanto, em uma vontade de pesquisar o passado. Nesse caminho, nossos caminhos se cruzaram com a da antropóloga Nina Bitar, professora do curso de Gastronomia da UFRJ. Nina é das nossas: acorda, come e dorme pensando em feira, passou a última década de sua a vida estudando o assunto, em particular os mercados do Rio de Janeiro. Nossa conversa com ela tem sido tão boa e repleta de descobertas que decidimos fazer uma entrevista e compartilhá-la com vocês. Passear com ela pela história dos mercados da cidade é também uma forma de nos darmos conta de que todo mercado nunca é apenas um local impessoal e utilitário de troca de mercadorias. O mercado é um lugar de intensa interação social e congregação. Sempre foi assim, e se depender de nós, sempre será.

Foto Nina Bitar. Crédito: Myriam Melchior

Fale um pouco sobre sua trajetória acadêmica. Como foi que você, de certa maneira, acabou se tornando uma pesquisadora de mercados? 

A minha primeira pesquisa de campo antropológica foi na feira livre de alimentos da Rua General Glicério, em Laranjeiras, RJ. Cursava a graduação em Ciências Sociais no IFCS/UFRJ e como trabalho de final de disciplina pesquisei, junto com um grupo, a sociabilidade em torno dessa feirinha. Conversei com diversos feirantes para compreender as dinâmicas do local. Eu já tinha, desde então, um interesse pelos estudos sobre alimentação. Talvez por minha ascendência italiana e libanesa, percebia que os melhores momentos de sociabilidade em minha família eram em torno da cozinha e da mesa. Segui nesse caminho fazendo pesquisas sobre o tema na iniciação científica, abordando a comida em autores como Câmara Cascudo ou em festas populares, como a festa do Divino Espírito Santo. 

Como desdobramento, fiz a minha pesquisa de mestrado em Antropologia no PPGSA/UFRJ sobre a patrimonialização do “Ofício das baianas de acarajé”. Nesta pesquisa, busquei analisar como as próprias baianas percebiam a noção de patrimônio e os diversos significados do seu ofício. Abordei a forte ligação dessa comida com as religiões afro-brasileiras.

Já no doutorado pensei em fazer uma pesquisa no Mercado do Ver-o-Peso, mas não foi possível por diversos motivos. Assim, comecei a explorar as possibilidades de pesquisa aqui na minha própria cidade. Mas ela não tinha um Municipal.

Nas investigações, lembrei de uma amiga que sempre falava que sua mãe só comprava insumos para festas no Cadeg (Centro de Abastecimento do Estado da Guanabara), localizado no bairro de Benfica. Resolvi então fazer a minha festa de 30 anos e fui lá para comprar todos os produtos necessários. Fiz uma boa festa e quatro anos depois celebrei a defesa do meu doutorado sobre o mercado. O Cadeg também tinha se transformado, tornando-se o novo Mercado Municipal do Rio de Janeiro.

O que me chamava a atenção no mercado era esse espaço de relações sociais tão intensas. De madrugada, entrada e saída de caminhões recarregando as lojas com produtos. De tarde, um público ávido por consumo, lazer e comensalidade em seus restaurantes. Como estes espaços permaneciam vivos ao longo de tantos anos? Como eles resistiam às transformações sociais? Quais as relações desses espaços com as dinâmicas das cidades? Essas eram algumas das minhas perguntas iniciais.  Então, buscava a partir das histórias dos mercados, formada por seus participantes, traçar uma biografia da cidade.  

Fonte: Acervo CADEG

Você comenta em sua tese que a biografia das cidades pode ser contada através de seus lugares. Sabemos pouco da história dos mercados e feiras livres do Rio de Janeiro. Está faltando um capítulo na biografia da nossa cidade? Quais são as principais histórias que foram apagadas neste sentido?

Um grande sociólogo escreveu que as cidades são formadas, inicialmente, em torno dos mercados: eles são o cerne das cidades. Os diversos mercados que existiram no centro da cidade do Rio de Janeiro, como Mercado da Candelária, Mercado Municipal da Praça XV, entre outros, foram simplesmente apagados da história da cidade. Eles eram os centros distribuidores de alimentos e foram literalmente colocados abaixo pelas políticas públicas. 

O Mercado Municipal da Praça XV, fundado em 1908, é um exemplo disso. Foi atravessado pelo Elevado da Perimetral e posteriormente demolido em consequência da política rodoviarista do país. Os comerciantes de tal mercado precisaram arcar com recursos próprios, sem qualquer auxílio do governo, para construir o Cadeg em 1962. Lá, mantiveram o abastecimento da cidade, perpetuando o papel social e simbólico dos mercados. 

Fonte: Acervo CADEG

A área onde era localizado o antigo Mercado Municipal da Praça XV, por exemplo, foi um local de grande relevância comercial na cidade. Não é por acaso que lá foi construída a antiga Bolsa de Valores. Desde o período colonial havia uma importante comercialização de produtos realizada por pessoas escravizadas. Lá, homens, mulheres, escravizados e libertos faziam com que os produtos chegassem à mesa da população. Tais povos, trazidos à força para o Brasil, tinham fortes tradições de mercadores que perpetuaram nas novas terras. Recentes estudos mostram a complexidade e relevância da comercialização realizada, por exemplo, pelas “negras minas”, mulheres de poder e empreendedoras que mercavam na cidade. Depois, houve a criação desses mercados de abastecimento no mesmo local, contando com a forte atuação desses agentes, assim como a entrada de imigrantes italianos, portugueses e espanhóis. No mesmo local havia ainda o entreposto de peixe, que trazia os pescados na Baía da Guanabara para serem consumidos ali mesmo. Tudo isso foi retirado e hoje, no local, há apenas o Restaurante Albamar, localizado no único torreão que restou do Mercado Municipal. Isto é um reflexo das políticas públicas de ocupação das cidades e de apagamento de setores relevantes da sociedade.

Assim, busquei resgatar esses imaginários sobre os mercados. Tornou-se relevante perguntar, num primeiro momento, como as pessoas narram as suas vidas a partir de um mercado, e como as pessoas estão construindo um imaginário da cidade desde esse espaço específico. 

Uma transformação que você descreve é da visão dos mercados como lugares “sujos” que atrapalham o desenvolvimento das cidades, (motivo usado no passado para justificar seu remanejamento para fora dos centros) para lugares em que, para além das relações comerciais ou da impessoalidade moderna, se vivencia “experiências” por conta de outros fatores. Quais são estes fatores?

As reportagens de jornais da época da demolição do Mercado Municipal da Praça XV são impactantes por exaltarem o seu fim: “o dia da queda da Bastilha(…). Não vai sobrar pedra sobre pedra”, diziam. É de se espantar, atualmente, a demolição de um mercado criado em 1908, com uma enorme e elaborada estrutura metálica colocada abaixo com tanta voracidade. Hoje em dia seria, certamente, considerado um patrimônio cultural. Entretanto, havia uma outra concepção do mercado, como um local sujo e que atrapalhava o trânsito e a movimentação no centro da cidade. 

 

Atualmente, em diversas cidades do mundo, percebemos a ascensão dos mercados de abastecimentos como locais a serem visitados, locais de experiências gastronômicas e lazer. Tal motivação é ancorada na percepção dos mercados como espaços que revelam o que há de essencial da produção local. Os produtos que lá são vendidos, a proximidade entre o consumidor e o produtor são alguns dos aspectos que tornam esses locais atrativos. Há ainda uma ideia de reconexão do mundo urbano com o ambiente rural através dos produtores presentes. Uma busca pelo rural perdido. Os restaurantes também acabam sendo atrativos por terem todas as suas matérias primas ali ao lado, nas bancas dos seus comerciantes vizinhos. Assim, há um público que busca essa reconexão, pautada numa ideia de ali ter produtos frescos e diretamente trazidos pelos produtores.

Fonte: Acervo CADEG

De que forma estas versões contemporâneas de mercados (enobrecidos e patrimonializados) se inserem no contexto de projetos urbanísticos? O que aconteceu no caso do CADEG e da possível criação do mini-Cadeg na Praça XV? Quais são os dilemas que isso cria? 

As políticas públicas passaram, tardiamente, no caso do Rio de Janeiro, a valorizar esses espaços como marcos históricos relevantes. Os mercados como Cobal do Humaitá, Cobal do Leblon, Mercadinho de São José, Cadeg, Feira de São Cristóvão e Mercadão de Madureira foram patrimonializados com o intuito de preservar tais memórias. Há, distribuídas pelo país, uma coleção de mercados patrimonializados pelo poder público, sejam como bens materiais ou imateriais. 

Os processos de gentrificação, ou enobrecimento, são inevitáveis com as recentes valorizações dos mercados. Esse é um risco do que alguns chamam, de “perda da sua autenticidade”. Contudo, os processos sociais de transformação e ressignificação de espaços são dinâmicos, não havendo um significado fixo do que seria um mercado “autêntico”.  

O Cadeg, por exemplo, foi esquecido por muitos anos, havendo a partir dos anos 2000 a entrada de iniciativas que ajudaram o mercado a se reerguer: restaurantes de chefs renomados, diversificação dos tipos de comércio, investimentos em melhorias de infraestrutura, entre outros fatores, ajudaram a sua renovação. 

No contexto de investimentos com as Olimpíadas e Copa do Mundo houve, na comemoração dos 50 anos do Cadeg em 2012, a proposta da Prefeitura para a recriação do Mercado Municipal da Praça XV. Seria um mini-Cadeg, representando tudo que o mercado foi para a cidade. Contudo, tal projeto não foi levado à frente e também não ficava estabelecido como seria esse novo mercado, quem iria para lá, quais tipos de comércio seriam incentivados. 

Neste contexto, do mercado enquanto experiência o que se troca nos mercados não são apenas produtos, mas são também objetos com suas histórias e biografias próprias. De que forma isso pode ser relacionado ao movimento muito presente hoje em dia de se valorizar o pequeno produtor e a origem dos produtos? A principal forma de relação nos mercados é apenas entre vendedor e cliente?

A relação social, independente de ter o contato com o produtor ou com apenas um vendedor, é um dos atrativos dos mercados e feiras. Um importante antropólogo fez uma extensa pesquisa nos mercados do Marrocos, verificando que, por exemplo, os rituais de barganhas entre vendedor e comprador são atrativos fundamentais. No contexto que ele estudou era esperado que houvesse esse jogo, uma característica jocosa de comunicação, rivalidades e de trocas entre as pessoas. De fato, se há a possibilidade de contato do consumidor com o próprio produtor, há uma elevação da qualidade da experiência do consumidor. Como citado, existe essa busca por um mundo rural perdido, representado pelos produtos frescos e pelos produtores que os vendem. Dessa forma, há também uma busca pela origem do produto, uma compreensão de como foi feito, em quais condições. Esses atrativos fazem com que os mercados ofereçam experiências distintas de supermercados ou shoppings centers, por exemplo. 

Além da relação entre produtos, produtores, vendedores e consumidores é importante, também, a relação com a construção física dos mercados: as suas características arquitetônicas e urbanísticas. Muitas pessoas buscam visitá-los para compreender um pouco da história comercial de lugares, assim como a sua relação com os demais espaços do seu entorno.


De que forma o apagamento da história e a ausência de políticas públicas influenciam na situação atual dos mercados e feiras do Rio de Janeiro? Qual tem sido o papel deste tipo de mercado em outras cidades?

A política pública de abastecimento do Rio de Janeiro promoveu a centralização e escoamento de produções de gêneros alimentícios em locais mais afastados dos centros comerciais. Isso foi impulsionado pela criação das Ceasas, por exemplo, na década de 70. Elas tomaram os espaços dos antigos mercados, como foi o caso do Cadeg, que sofreu um esvaziamento de seu significado para a cidade. O Cadeg passou de um grande abastecedor para um local sem função, na época. Com isso, precisou reinventar-se, já que as Ceasas se transformaram nas abastecedoras das feiras, restaurantes e mercados, impulsionadas também pelo avanço da monocultura. Desta forma, os pequenos produtores de agricultura familiar cada vez menos têm espaços para o comércio de seus produtos. Há, hoje em dia, as feiras orgânicas, sacolas virtuais e lojas especializadas, mas esses produtos ainda são destinados a uma pequena parcela da população. Os mercados formados por pequenos produtores são ainda mais escassos, faltando ainda incentivos ao aumento da produção para o seu barateamento. O Rio de Janeiro, por exemplo, poderia ter mais espaços fixos destinados à valorização desse tipo de produção familiar e agroecológica, aliados à sociabilidade promovida pelos mercados. Espaços democráticos que valorizassem a diversidade sociocultural do país expressa pelos seus alimentos.

O samba e o futebol tem lugar muito maior no imaginário da cidade. Você acha que as feiras e os mercados têm lugar nesse imaginário, principalmente pensando neste momento em que se discute muito o futuro da cidade após o fracasso do projeto relacionado à Olimpíada e da crise econômica e da COVID-19?

Os mercados ainda resistem tanto aos processos de apagamento, por um lado, como de extrema gentrificação por outro. Eles ainda estão vivos porque representam experiências de consumo que não são apenas guiadas por uma prática utilitária de livre comércio, mas envolvem complexas relações sociais e simbólicas. Os mercados fazem parte de imaginários sobre a cidade, mas muitos não são valorizados como tal. O próprio Mercado Municipal da Praça XV é um exemplo disso. Como seria a Praça XV se o Mercado Municipal não tivesse sido demolido? Sempre penso nisso quando vejo o solitário torreão do Albamar e o vasto estacionamento à beira da Baía da Guanabara, local onde outrora era ocupado pelo mercado e o entreposto de peixe. Como seria essa cidade imaginada? Entretanto, mesmo com todas as tentativas de apagamentos, as feiras e mercados estão presentes no dia a dia das cidades e nos imaginários da população.