Por Thiago Nasser 

O ingrediente deste mês é o milho e coube a mim encerrar a nossa sequência de receitas, inaugurada pela Renata Araújo e continuada pela incrível Alice Lutz. Embora havíamos combinado de neste mês trazer um pouco de representatividade masculina à série – afinal somos igualmente responsáveis pela cozinha e tarefas domésticas – nossa ideia de convidado brilhante definitivamente não me incluía. Mas por conta de alguns desencontros e do nosso compromisso de honrar as 10 receitas cá estou. 
E aí começou a angústia de como honrar o ingrediente, o milho. Não poderia fazer feio. Teria que baixar o Câmara Cascudo em mim, reler toda obra sobre a culinária caipira do Carlos Alberto Dória e fazer um estágio no Lasai para fazer a síntese de toda glória do milho enquanto ingrediente. E mais, com receitas em versão dono-de-casa com crianças e mulher famintos e acessível para a família carioca. Mas nunca o ingrediente é muito mais que um produto, é história e resgate! Teria que baixar a Vandana Shiva, falando da importância de se preservar a variedade do milho e defender os camponeses que são os guardiões de toda biodiversidade genética planetária e ainda uma pitada de Massimo Botura para fazer uma releitura moderna da cocina povera baseada no milho considerando também seus usos originários no lado de cá do Atlântico.

Vai dar caroço nesse angu.
Aí baixou simplesmente o desespero.
Nessas horas, o que faz o dono de casa? Ele faz uma oração e abre a geladeira em busca da salvação. 

Além do maravilhoso fubá de milho crioulo da Maravilhas São José e da pipoca orgânica da Ecobio (Pur Nutrir) que havia reservado para a missão, o nível de preparo estava próximo de zero. Fiz uma genuflexão para enxergar melhor aquele recôndito frigorífico que é o fundo da prateleira mais baixa da geladeira. Potinho de fubá branco do Sítio Córrego Alto e banha, de lá também. Potinho de quirera orgânica. Comecei a ver a redenção. Na gaveta abaixo, alguns belos verdes do Fred Orgânicos, que acaba de chegar na Sacola. (Confesso que havia outros itens nesse CEP da geladeira: pote de doce de leite semiaberto, banana quase podre e alface murcha, mas tenho que apresentar uma geladeira bem Junta Local, então quietinhos, beleza?). 

É nesses momentos em que a cozinha-desespero entra em campo e brilha. Mais que uma receita ou técnica perfeita vale um pouquinho de criatividade e muita prontidão para aceitar o fracasso.

Uma das modalidades da cozinha-desespero é jogar seguro. A combinação água, ou caldo ou leite (ou a combinação em qualquer proporção aleatória destes) mais milho triturado nunca fracassou. Me veio à cabeça o angu servido frio e gelatinoso da casa das minhas vós mineiras, os jantares com “polenta branca italiana” e “ragu de linguiça e cogumelos” para 20 pessoas que constituíram meu auge como cozinheiro e tirador de onda gastronômico amador, e as polentinhas para assistir a um filme numa noite chuvosa.
Não estou aqui para falar sobre fubá, farinha, flocão, quirera, hominy, samp, tampouco para discutir o que diferencia o angu, da polenta ou do grits. No aperto é a verdade que se revela. E eis ela aqui: quanto mais amido o milho menos água será necessário para cozinhar e “dar liga”. Quanto maior o teor de açúcar, menos gordura será necessária na finalização. Quanto mais fina a moagem, menos tempo de cocção, e o inverso. Mexa de forma constante para não grudar no fundo ou nas beiradas, prove o sal, vá colocando mais água, caldo ou leite até chegar no ponto. E coloque em fogo baixo para que as bolhas de milho não estourem na sua cara. Você não quer ir para o hospital e dizer que uma polenta desfigurou sua cara.
O angu do desespero – que você pode chamar de polenta ou grits – dependendo da ocasião e das pessoas que estiver querendo impressionar,  é muito mais modus desesperandi do que receita, mas para quem quiser, mais abaixo tem algo que se assemelha a isso. E, sim, sobre a cama do angu sempre é possível deitar o ragu da pretensão. Ou do que estiver à mão mesmo. Cogumelos salteados, molho bolonhesa requentado. Ou até mesmo ragu.

No caso do angu preparado neste dia em particular lancei mão de couve toscana e mostarda roxa (vegetais também podem ser pretensiosos, além de deliciosamente amargos). Esquentei bem uma frigideira com azeite e manteiga e xablau (tinha que prestar minha pequena homenagem ao grande Paulinho Tiefenthaler, mestre da cozinha de guerrilha)!
Ficou muito bom. E, falando sério agora, a qualidade do milho faz toda diferença e aqui visto com todo orgulho a camisa Junta Local. Pagar um pouquinho a mais por milho vai dar um retorno muito maior do que pagar 100 reais a mais naquele vinho que se parece muito com o de 35 reais que você tomou ontem à noite. 

Agora vamos para a outra modalidade da cozinha-desespero: preparar pratos que jamais fez antes para ver o que acontece.
Uma destas receitas é o grits ou mingau de pipoca, que um dia vi no Youtube sendo preparado por um chef que admiro, Daniel Patterson. Me pareceu algo simples, genial e lúdico.

Olhei rapidamente o vídeo de novo. Não deu tempo de anotar as medidas nem de consultar a receita. Tava chegando a hora do almoço e minha filha queria brincar de tirolesa imaginária enquanto papai bancava o homem milho. Comecei a fazer a “receita”. Se não bastava a pandemia para virar a rotina de ponta cabeça, agora papai estava fazendo pipoca às 11 horas da manhã.

A pipoca vai sendo mergulhada na água com sal e manteiga e depois espremida num coador para depois voltar para a panela para engrossar. Fiz isso. Ficou um pouco líquida demais. Então coloquei um pouco da polenta que deu certo para engrossar e ficou tudo certo. Saber burlar as regras é essencial na cozinha-desespero. Mas, claro, vocês vão apenas anotar isso e contar para ninguém. Para não parecer um mingau sem graça, apelei para o santo ovo frito, outro companheiro estratégico da modalidade.

Um dos pontos essenciais da cozinha desespero é saber quando parar antes que a louça não vire uma pilha inadministrável e toda sua agenda vá por água abaixo. Foi exatamente o que não fiz.

Já sofri críticas por comprar lindos livros de receitas e jamais colocá-las em prática. Me pareceu um bom momento para afastar de vez esse julgamento totalmente equivocado. Peguei o livro “Heritage” do Sean Brock, ícone no revival da cozinha sulista americana. Lindas fotos de grãos coloridos, composições minuciosas. O moço ficou rico vendendo angu (ou grits) nos restaurantes dele. Folheio pra cá e pra lá em busca de algo que não tivesse consistência de mingau. Chego na receita do “Cracklin’ Cornbread”.  Se tem uma coisa que não sei fazer nem gosto de fazer é bolo ou pão. Mas como a receita parecia fácil e pedia por uma frigideira de ferro fundido que nunca uso, pensei: por que não fazer um bolo de milho?

E não é que deu certo?

Bolo de Milho de Frigideira (copiado na cara de pau e adaptado)
Ingredientes:

1 xícara de fubá (usei uma mistura fubá da Maravilhas São José e do Córrego Alto, peço apenas que não usem milharina, obrigado)

½ colher de chá de sal

¼ colher de chá de fermento

¼ colher de chá de bicarbonato de sódio

100ml de iogurte

1 ovo batido

2 colheres de sopa de gordura (banha, manteiga derretida ou bacon)

Modo de Preparo:

Coloque a frigideira no forno para dar uma pré-aquecida. 20 minutos com o troço de rodar pela metade está bom. 

Numa cumbuca, junte os ingredientes secos. Numa outra cumbuca, os molhados, incluindo a gordura (reservando um pouco para a frigideira). Eu deixei a banha perto do forno para ela derreter. Mas pode levar ao microondas. Outra coisa que funcionaria (acho) é colocar bacon em cubinhos na frigideira em fogo baixo e usar a gordura que solta. Na ausência dessas gordurinhas porcinas, a manteiga resolve. Misture o seco no molhado, ou vice-versa, tanto faz. Misture o suficiente para incorporar.
Retire a frigideira do forno e coloque no fogo alto do fogão. Se não tiver uma frigideira de ferro fundido é só usar uma frigideira normal em fogo bem alto e rezar para dar certo.

Coloque mais um pouco de gordura na frigideira, deixe esquentar e em seguida despeje a massa do bolo. Fique de olho e vire quando começar a dourar. (Eu deixei queimar um pouquinho). Quando o outro lado dourar, retire da frigideira com a espátula ou qualquer outro instrumento útil para esse fim. Deixe esfriar antes de levar à mesa. Vai bem com queijo, goiabada, geleia ou puro. No dia seguinte vai estar melhor. Comer fresco às vezes é frescura.


Grits de Pipoca
Ingredientes (tudo no olho):

milho de pipoca
óleo de cozinha ou azeite
sal
manteiga
água

Modo de Preparo:
Faça uma panela de pipoca. Não ouse usar de micro-ondas.
Numa panela, aqueça umas três xícaras de água com umas duas colheres de sopa de manteiga e umas pitadas de sal.

Taque (um termo usado nos melhores manuais de técnica culinária) um tanto de pipoca na panela e deixe ali por uns trinta segundos, com fogo baixo. Coe. Reserve as pipocas que ficam deprimentemente murchas e leve o que sobrou da água de volta para o fogo baixo. Repita a operação até todas as pipocas ficarem deprimidas. Se precisar, dê uma complementada de água, sal e manteiga na panela. Não fique deprimido.
Ao final desta operação, esprema as pipocas murchas por um coador. O resultado será uma espécie de mingau. Leve esse mingau ao forno com um pouco da água que sobrou. Se ficar grosso, coloque mais água. Se ficar muito líquido, coloque um pouco de polenta. Acerte o sal
Sirva num prato com mais um pouco de manteiga e o que mais quiser. Ovo frito fica 10. 

Angu do Desespero

Leve à panela o fubá de milho e mais ou menos 4 vezes o volume em água (ou caldo de legumes) e umas pitadas de sal. O Sean Brock recomenda deixar anteriormente o fubá hidratando por 12 horas para diminuir o tempo de cocção (quanto mais cocção, menos sabor). Eu deixei por uns 20 minutos. Depois que levantar fervura, abaixe o fogo. Mexa feito um louco o máximo que puder. Você vai se esquecer disso, mas o importante é evitar que grude no fundo e nas laterais. Nada de caroço nesse angu. Vá provando, corrigindo o sal, colocando mais água ou caldo. Recomendo colocar leite só no final e apenas se o milho não for incrível. Pode demorar 30 minutos ou 3 horas. O importante é estar presente e ir provando. Quando estiver quase no ponto, pense no complemento. Salteie os verdes, esquente o molho, termine o ragu. Aí é só empratar e respirar com alívio. 

Veja aqui todas as receitas da nossa série.