Começo de ano é sempre tempo de resoluções alimentares, início de dietas e preocupação com a saúde (claro, a ser esquecida e renovada no começo do ano seguinte). Muito comum nessa empreitada é dar um reforço na dieta com alimentos que prometem uma miríade de benefícios, os chamados superalimentos. Todo ano a lista deles se atualiza e renova com chia, óleo de coco, spirulina e por aí vai.
Em comum, todas estas supercomidas possuem doses cavalares de algum nutriente, e, muito provavelmente são altamente antioxidantes. Não pode ser ruim, né? Afinal, a informação sobre esses benefícios está baseada em algum estudo feito por uma universidade.
No entanto, a realidade é muito mais complexa e estamos longe de amealhar evidência científica sólida sobre os benefícios da maioria desses alimentos. Um dos erros científicos ou, mais especificamente, na leitura que se faz dos estudos, é o que Marion Nestle, chama de nutricionismo, a tendência a reduzir os alimentos a seus componentes.
A não ser que você esteja no hospital sendo alimentado por um tubo, é mais provável que você coma comida e não nutrientes. O corpo interage com essa comida como um todo, possui suas particularidades genéticas e está inscrita em um contexto muito maior. Toda essa dinâmica é dificilmente captada por estudos, que costumam focar em nutrientes – mais fáceis de se estudar individualmente (sem entrar na questão de como estudos científicos desse tipo muitas vezes são financiados). A dificuldade de interpretar e ponderar essas pesquisas e a vontade que todos têm de melhorar sua dieta abrem espaço para a crença em superalimentos milagrosos, habilmente explorada pela indústria da alimentação e da nutrição. Acreditar em milagres é bastante humano.
Pegamos a deixa para discutir o assunto de um artigo publicado há um tempo na Observer Monthly, da revista inglesa The Guardian, onde há um suplemento sobre comida. O artigo está livremente traduzido abaixo com intuito de provocar uma reflexão: o discurso da comida de verdade é baseado em um conhecimento muito simples, que pode parecer até primário: coma menos, mais plantas e evite porcarias. O problema é que a venda desse discurso é pouco rentável e atrativo, o que gera outras alternativas que precisam ser encaradas com um certo grau de desconfiança. É o que nós pensamos.
Que comamos chia, linhaça e seus congêneres, mas que pensemos de onde eles estão vindo e por que estão sendo alardeados. Que comamos comidas não por serem milagrosas, mas por serem gostosas.
A Verdade sobre Comidas Milagrosas – De Sementes de Chia até Óleo de Coco
Artigo originalmente publicado na versão online da revista The Guardian, no dia 15 de fevereiro de 2015.
Texto por Dana Mohammadi
Livros são ótimos lugares para procurar respostas, e tem um clássico que jamais deve ser subestimado: o dicionário! Portanto, da próxima vez que estiver pensando em gastar os tubos para comprar aquele alimento milagroso que vai vencer o câncer, diabetes e doenças do coração e ainda garantir aquela barriga tanquinho, abra o dicionário até a letra M, e continue até achar a definição da palavra milagre: “um acontecimento maravilhoso e extraordinário” – até aqui, tudo bem – “que não pode ser explicado pela natureza ou leis da ciência”.
De acordo com Duane Mellor, professor assistente da Universidade de Nottingham e porta-voz da British Dietetic Association, “seja chia ou óleo de coco, não há qualquer evidência científica que sugira que se você incluir na sua dieta alimentos milagrosos [os chamados superalimentos] haverá os efeitos prometidos, A ideia é quase que inteiramente um veículo de marketing, mas quando as pessoas lêem sobre seus benefícios em artigos na internet [ou em revistas, ou assistem no Globo Repórter], elas começam a acreditar neles”. Uma das razões que levam as pessoas a acreditar no hype é que, como em todo milagre – assim como truques de mágica – o sucesso está na utilização de espelhos e fumaça. No caso dos alimentos milagrosos, ficamos envoltos em uma fumaça feita de terminologia científica enquanto marketeiros da comida saudável e mágica mergulham fundo nos nossos bolsos. “Muitos produtos costumam vir acompanhados de todo tipo de jargão científico, como ‘mantém a função cognitiva'”, diz Mellor, “que são afirmações bem ralas revestidas de ciência que as pessoas traduzem como algo significante para a saúde. E aí temos antioxidantes e radicais livres, que estão entre as palavras mais temidas e malcompreendidas que temos”.
Radicais livres são elementos instáveis que saem voando como resultado de qualquer reação química no corpo que consuma oxigênio. Eles são livres porque possuem um elétron a menos e, na tentativa de readquirir estabilidade, roubam um elemento de outro lugar, seja da gordura encontrada nas membranas celulares ou do DNA. O prejuízo causado por elas nesse verdadeiro “bullying” para reaver elétrons é chamado de stress oxidativo e pode estar associado a doenças cardíacas, câncer e diabetes.
No entanto, os radicais livres estão envolvidos também em processos benéficos. Eles ajudam a destruir bactérias invasoras e desempenham um papel na comunicação entre células. Para limitar o seu papel a apenas suas funções positivas, o corpo produz antioxidantes que, assim como pessoas que se abanam no calor e bebem água de coco na ressaca, servem para aliviar, fornecer os radicais livres com os elétrons que precisam para não causar danos em outros lugares.
“Mas se você olha para os antioxidantes que circulam pelo nosso corpo”, diz Mellor, “de longe os mais comuns são aqueles que nós mesmos produzimos – glutationa e ácido úrico – seguido pelas vitaminas A, C, e E, que de toda forma extraímos de comidas normais. Muitos dos oxidantes contidos em coisas como chia estão lá para impedir que os óleos das plantas entrem em processo de rancificação ou proteger dos danos da luz solar, e que podem não estar disponíveis. Ainda que muitas agências regulatórias [como a ANVISA] permitam que fabricantes digam que seus produtos sejam ricos em antioxidantes – o que de fato são – eles não são autorizados a afirmar que elas possuam benefícios para a saúde. É só ler as letras miudinhas para captar esse belo drible legal”.
Mesmo quando utilizados como suplemento, diversos estudos mostram que não há benefícios oriundos do consumo de antioxidantes.
Parte dessa confusão acontece porque as dietas são complexas. É difícil separar as contribuições feitas por componentes individuais porque os nutrientes contidos em alimentos apenas se tornam utilizáveis quando comidos como parte de uma dieta muito mais abrangente: há estudos que mostram que apenas quando cozinhamos cenouras, por exemplo, que o betacaroteno se torna disponível; e o licopeno em tomates só cumpre seu potencial quando consumido em conjunção com óleo.
E como interpretar outras promessas vagas sobre comidas que podem ajudar a perder peso ou fortalecer o sistema imunológico ou coração? Todas parecem razoáveis e coerentes, não? Segundo Ali Khavandi, cardiologista do Royal United Hospital em Bath, na Inglaterra, há um motivo por trás do caráter vago dessas promessas – elas se baseiam em experimentos feitos em animais ou células humanas em um laboratório. Não há provas de que tenham efeitos em pessoas, na vida real, e, até sua eficácia ser comprovada, vale manter a mente aberta, mas também se precaver contra exageros.
“Como médicos, acho que perdemos o foco”, ele diz em relação a importância de dietas saudáveis na prevenção de doenças crônicas como diabetes e problemas cardíacos. “Ao longo do últimos anos, ficamos mais interessados no lado sexy da prevenção de doenças – novas drogas e tecnologias e por isso saímos da cena e abrimos espaço para pessoas desqualificadas e os gurus-celebridade que falam de saúde que ajudam a disseminar ideias não comprovadas.” Ele continua: “como médicos, temos a obrigação de reassumir uma voz de autoridade no que tange formas saudáveis de se comer”. No entanto, tirar a palavra desses gurus e das modas alimentares pode ser difícil. O problema é que “a nossa mensagem – baseada em evidência que já foi comprovada diversas vezes – não é tão interessante, parece ultrapassada”.
A mensagem é que frutas e verduras fazem bem, assim como castanhas e cereais integrais. No caso da gordura, devemos escolher as insaturadas, como azeite de oliva e aquelas extraídas de peixes. Devemos evitar comidas e carnes processadas, farinhas brancas e gorduras processadas.
Tudo muito simples, mas com artigos sensacionalistas, que aparecem todo dia advertindo contra comidas específicas ou recomendando outras, as pessoas se perdem. A dica dele é bem simples: “se você ler algo em um blog que pareça razoável e promissor, se pergunte porque a empresa não usa isso no seu marketing. Se o produto realmente prevenisse o câncer ou afastasse doenças cardíacas, não estaria estampado em letras garrafais no rótulo?”.
Siga o link para o artigo na íntegra, publicado no The Guardian, falando da (falta de) evidência que comprova a eficácia de muitos superalimentos que, se já não estão na moda, em breve aparecerão em uma prateleira perto de você.
Crédito das fotos: Samuel Antonini | antonini.fot.br