Fazenda Santa Luzia: Av. Comendador Serafino Fileppo, s/n, Itapetininga – SP
Foi difícil deixar para trás as lindas cabras do Capril do Bosque, mas o senso de estar cumprindo uma missão maior nos fez enxugar as lágrimas e botar o pé na estrada novamente. O próximo destino seria outro paraíso da queijaria artesanal, a Fazenda Santa Luzia, em Itapetininga, estado de São Paulo. De lá conhecíamos apenas queijos como o Simental, Tropeiro, Giramundo e Braukäse que chegavam – e com grande sucesso – nas feiras e na Sacola Virtual pelas mãos do Queijo com Prosa. Ao contrário dos queijos curados do Salitre e da Canastra que seguem um certo padrão – queijos de leite cru refletindo o terroir, massa firme e sabor pronunciado e até mesmo picante –, os da Fazenda Santa Luzia são variados e bastante distintos entre si, mas igualmente feitos em técnica e propósito deliberados. Quem seria a pessoa arteira por trás daqueles queijos… Não demoraria muito para descobrirmos.
Cruzamos a grossa malha rodoviária que circunda São Paulo até chegar a uma região bastante plana, pontilhada por cidades, galpões industriais e fazendas. O cenário de certa forma não correspondia ao que imaginávamos em relação à produção de queijos. Não estávamos no interior de Minas, não havia morros recobertos de pastos. Não pareceria que ali encontraríamos o sábio homem da roça preservando receitas seculares de queijo.
Depois de brigar um pouco com o GPS que nos levou para dentro da cidade, conseguimos nos encaminhar na direção certa. Estávamos famintos. Deveríamos comer na cidade ou chegar até a Fazenda? Optamos pela segunda. Seguimos por um estrada vicinal que de repente virou de terra. As luzes da cidade não chegavam mais, estávamos num breu cortado pelo farol do carro.
Finalmente uma casa localizada entre um campo de trigo e o que parecia ser um pasto. Tocamos a campainha e esperamos. Logo em seguida a porta se abriu e fomos apresentados a Maristela Nicolellis. Havia a questão fome a resolver, mas antes nos sentamos na mesa de reunião do escritório da Fazenda. Maristela abriu uma garrafa pet de ginger ale que ela mesma havia feito. A bebida apimentada de gengibre desceu bem pela garganta, mas a barriga ainda roncava.
Maristela não era muito diferente da bebida: apimentada. Sem papas na língua, ela nos falava sobre o dia-a-dia árduo na Fazenda. Acordar cedo, tirar leite das vacas, lidar com um plantel sempre difícil de trabalhadores e manter tudo funcionando mesmo com pagamentos atrasados. Descendente de alemães, Maristela poderia facilmente ser ilustrada aqui de forma estereotipada: direta, humor ácido e detalhista. Assim, a história de como a Fazenda evoluiu e como ela começou a produzir queijos artesanais numa época em que não havia mercado para queijos brasileiros de qualidade pode ser contada desta maneira, como a de uma pessoa de certa forma “ilhada” em terra firme, buscando fazer queijos com técnica e disciplina.
Após a conversa inicial, fomos perguntados se estávamos com fome e se queríamos ir à cozinha para comer alguns queijos. Aceitamos o convite de forma educada tentando sufocar os gritos internos de aleluia.
Na cozinha, Maristela colocou sobre uma tábua tranchas grossas dos queijos (“uns não podem ser vendidos por conta de alguns defeitos, mas estão ótimos!”), cortou um pão rústico e abriu uma garrafa de vinho. A imagem de durona aos poucos começou a se desfazer, assim como a massa do queijo Dionísio se revela macia depois que a faca atravessa sua casca grossa. A cada fatia, ela contava a história de como seus queijos começaram a ser feitos.
O Simental, um delicioso queijo curado, deve o nome ao gado Simental, que é criado na Fazenda e foi trazido, reza a lenda, por navio da Áustria pela família de Marten, seu marido. Marten é formado e pós-graduado em Veterinária, mas adotou a vida de fazendeiro, ajudando a procriar o gado. Ele é também o contraponto carinhoso de Maristela. Quando ela se queixava de algo, ele logo buscava colocar a questão em perspectiva.
Maristela ia amolecendo a cada mordida e continuou contando a história de cada queijo. Com o Garnizé a ideia foi introduzir ervas do próprio quintal; com o Carijó a ideia foi achar o balanço entre a acidez do queijo e o dulçor do kümmel, tão caro às suas raízes. O Pioneiro é um gigante queijo curado, que praticamente requer um facão de bandeirante para ser cortado.
Aos poucos, o discurso de Maristela se atenuava e ela mostrava um lado incrivelmente generoso, grato às pessoas que levam seus queijos para a cidade e o apreciam. Apesar de todos os percalços, ela ama a vida na fazenda. Transmitir conhecimento e fazer do queijo a sua arte são seus motores. Depois descobriríamos que ela também dá aulas de alemão e é cantora lírica amadora nas horas vagas. Tudo foi ficando mais claro.
Na manhã seguinte, após uma noite de roncos de satisfação (para quase todos que dormiram no quarto de hóspedes), visitaríamos o laticínio e os estábulos. Mas antes o café da manhã. Maristela e Marten haviam saído para trabalhar e deixaram uma mesa posta com granola, iogurte, frutas e, claro, queijos. Logo em seguida, calçamos as botas de borracha para poder entrar no ambiente totalmente esterilizado do laticínio. Na entrada vimos os tanques de aço inoxidável onde o leite recém ordenhado e resfriado começava a virar queijo com a separação do soro das outras partes. Maristela ensinou que para cada queijo a massa deve ser mexida com vigor e durante um tempo diferenciado, de acordo com a consistência desejada no final. Esse processo é feito manualmente e requer experiência. Maristela começou o aprendizado de forma autodidata, depois viajou, fez cursos e ganhos prêmios. Hoje ela passa seu conhecimento às funcionárias da Fazenda.
Passamos depois para o subsolo do laticínio, onde ficam as caves de maturação dos queijos. O aroma é marcante e despertou nossas papilas gustativas. Nas prateleiras das caves vimos os queijos em diferentes fases de amadurecimento. Maristela inspecionava-os e nos explicava o processo pelo qual cada um passava (periodicamente precisam ser virados ou escovados). Apesar do controle de temperatura, o queijo artesanal ainda é sujeito a uma série de outras variantes e assim é necessário ter o olho do queijeiro para monitorar essa evolução divina: um belo processo de “apodrecimento” controlado, que torna seu sabor muito mais complexo e cheio de umami. É fascinante. Tiramos mais fotos do que japoneses no Louvre.
Precisávamos pegar a estrada, mas uma entusiasmada Maristela nos animou a tirar as botas de borracha, calçar botas de couro para ir até o estábulo e ordenha das vacas Simental. Valeu a pena a esticada. As robustas vacas caminhavam pelo pasto. Como em outras propriedades que visitamos, conhece-se o nome de quase todas e estabelece-se uma relação de verdadeiro carinho com os animais. Talvez tomada por esse sentimento, Maristela fez um belo depoimento para a câmera da Junta Local. O quadro que se desenhava fica mais claro. Já sabíamos que bons produtos se fazem com cuidado, técnica, considerando pessoas e ambiente. Graças a Maristela agora recebíamos uma nova lição: bons produtos são feitos com arte.
Galeria de fotos
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