Esse texto é a terceira parte de uma série em que abordamos a questão do crescimento dos produtores da Junta Local. Ele se baseia em visitas e entrevistas feitas em 2019 mas também em relatos mais recentes sobre os desafios trazidos pelo coronavírus.
E a cozinha virou fábrica no mercado – Parte II Purifica e Devas
Por Thiago Nasser
Nossa segunda etapa do relato à CADEG se dedica a dois produtores pioneiros da Junta Local: Purifica, produtores de leites vegetais, e Devas, focada em produtos sem glúten. Ambos continuam firmes no espaço, atravessando a pandemia fazendo ajustes na produção e atuação. A história deles ecoa a da Blin e Infusiasta e ao longo dos últimos anos temos testemunhado sua evolução. A saída da “cozinha” de casa ou de espaços de produção improvisados, foi acompanhada por estudos para melhorar seus produtos e estratégias para se manterem como negócios. Em comum também, a intenção de mostrar que seus produtos são versáteis, saborosos e saudáveis, independente do interesse por veganos, no caso do Purifica, e celíacos, no caso dos Devas.
Comecemos com Purifica. Depois da nossa visita a Ellen e Catarina subimos um estreito lance de escada para chegar à sobreloja do endereço compartilhado, onde funcionava e ainda funciona o “chão de fábrica” da Purifica, pioneiros na fabricação de leites vegetais artesanais na cidade. Devidamente entoucados, fomos recebidos por Paloma Blanc e Rafael Ferro, fundadores do empreendimento iniciado em 2015. Demos algumas risadas lembrando da primeira feira deles na Junta Local, na rua do Rosário, quando o foco deles era a oferta de smoothies e chás. O leite vegetal era então apenas a base dos smoothies, produzidos em pequena escala na cozinha de Paloma, que desejava ter controle sobre a qualidade de todos os ingredientes usados. Através do contato com clientes nas feiras perceberam a demanda pelos leite vegetais. A guinada definitiva veio quando começaram a receber os primeiros pedidos pela Sacola Virtual e de outros parceiros. Responsável pelas planilhas, Rafael, que havia passado por empregos corporativos antes de um intercâmbio na Ásia que o refez repensar seus caminhos profissionais, começou ali a esquadrinhar a trajetória da Purifica, mas dentro da visão de controle dos processos de produção e de uma forte pegada de preocupação com sustentabilidade. A Purifica, nesse quesito, foi pioneira no reaproveitamento de embalagens de vidro. Esta marca continua na recente adoção deles pelas embalagens PET recicláveis. “A gente poderia ter terceirizado, tomado atalhos, mas preferimos não fazer isso. Com a mudança para cá, conquistamos muitas coisas, mas também ficou claro que a caminhada é longa”.
Um bom pedaço dessa caminhada foi percorrido com a mudança para o Centro de Distribuição do Rio de Janeiro, ou CADEG, junto com a BLIN, alguns meses antes. Dentre os equipamentos reluzentes, as prateleiras repletas de utensílios e geladeiras perfiladas,uma enorme geringonça futurista, cheia de tubulações de aço, se destacava e confirmava que a brincadeira iniciada alguns anos atrás ganhara uma nova dimensão. Paloma, uma nutricionista que deixou para trás o trabalho de gerência de um café para empreender, explica que se trata de um pasteurizador, responsável pelo tratamento térmico dos leites vegetais, uma etapa crucial para o prolongamento da validade, sem perda de qualidade e nutrientes. No começo da empreitada, a perecibilidade dos leites vegetais, produzidos numa cozinha doméstica, significava alto risco e impossibilidade de produção em maior escala. Problema resolvido com o investimento.
Mas apesar do emprego da tecnologia, todo o processo de produção continuava artesanal e dependente das mãos deles. “A receita não mudou nada, a amêndoa vai no mixer com água, depois filtramos pelo voal para depois passar pelo tratamento térmico. Depois vai para o tanque de envase e cada garrafa é enchida manualmente por nós mesmos, tudo vai para as panelas, que são levantadas no braço. Quando cheias pesam, 20, 30kg”. São dias distintos de produção para cada um dos leites vegetais: um dia para as castanhas de caju, provenientes de uma cooperativa no Rio Grande do Norte, um dia para as amêndoas, do Chile ou Califórnia, e um dia para o côco, de uma plantação na Bahia. A produção chegava a 1000 litros por mês e seria possível produzir até mais, no entanto, a capacidade de estocagem nas geladeiras impunha um teto. À época da visita, o leite de amêndoa e o achocolatado com cacau eram apenas ideias, que hoje já vemos na Sacola Virtual e prateleiras pela cidade. A cada quinze dias são produzidas as pastas, de avelã e o brigadeiro de colher. Nos dias sem produção se dedicam às entregas e demais trabalhos da Purifica. Ainda na prancheta de ideias, a ideia de usar outras oleaginosas, como o brasileiríssimo amendoim.
Durante a pausa para o almoço num dos restaurantes bem “cadeguiano”, Rafael e Paloma compartilham as dores de Catarina e Ellen e falam de ambições também. Além de novos produtos, estar presente em outras cidades se mostra como outra meta dos purificadores (que depois participaram das nossas feiras em São Paulo, estabelecendo algumas parcerias por lá), o que demandaria, “novos chãos de fábrica”, pois “da maneira que produzimos, temos que estar perto que quem consome, não somos a Coca-Cola, as pessoas têm dificuldade de entender isso”, disse Paloma. Novos produtos, novos locais de venda, todos estes são o que Rafael chama de “apostas” e para ele, o risco encarado pelo pequeno empreendedor faz com que ele ande em uma marcha mais lenta para fazer elas “darem certo”.
Apesar desse vaticínio, nada de siesta para nós. Aceleramos o passo para chegar ao espaço dos Devas, que facilmente localizamos no andar inferior do CADEG graças a um enorme girassol pintado na parede ao lado da porta de entrada do espaço. Ao longo dos últimos anos, acompanhamos a evolução da marca das DEVAS, que significa os elementais da natureza. O girassol representaria o equilíbrio entre eles, algo que Fernanda e Ana Paula parecem ter atingido do ponto de vista de seu negócio. Foram anos de estudos e cursos para melhorar suas receitas, entender cada ingrediente e até mesmo utilizar a fermentação em pães feitos sem farinha de trigo (farinha de sarraceno e figos e voilá). Todo um esforço para crescer, considerando todos os cuidados necessários com um público que inclui muitos celíacos, encontrar um portfólio de produtos, que vão dos pães de forma às broas de milhos, passando pelas baguetes, com muitos testes em feiras. e o desenvolvimento de produtos também veganos, sem lactose e congelados. As vendas começaram de porta em porta, principalmente em empresas, e depois veio a Junta Local e o aumento da produção, até chegarem no CADEG.
A nova localização nos é relatada como uma vitória por, criadoras do empreendimento. “Lá onde a gente estava antes [um espaço improvisado na Glória], tinha uma escada, e os fornecedores penavam para subir com peso. Aqui está bem mais tranquilo!”, conta Ana Paula, uma advogada que deixou de lado a carreira para se dedicar ao projeto, o que a levou por muito tempo a ser a entregadora oficial das Devas com sua moto, com direito até a uma reluzente jaqueta vermelha. (Hoje um parceiro realiza as entregas).
Adentramos o espaço. Na hora da visita houve uma queda de luz o que impossibilitou o trabalho do nosso fotógrafo Samuel Antonini, mas não atrapalhou em nada a constatação quanto à evolução. Logo na entrada ficam as prateleiras com todos os sacos de insumos trazidos por fornecedores que não precisam mais subir escadas. Lá também ocorre todo processo de embalagem. Na parte de cima da loja (visitantes não ficam eximidos das escadas), toda parte da cozinha, comandada principalmente por Fernanda. Ela prontamente acende um fogareiro para preparar uma boa baguete na chapa, para dar combustível à conversa e provar que um bom pão é um bom pão, independente de rótulos. “É incrível como ele fica fofinho de novo quanta esquenta!”, comemora ela. “A gente ainda vende tudo sem conservante, por mais que faça mais fornadas. A validade não passa de sete dias. Só dura mais se congelar”.
Enquanto isso, Ana Paula nos fala sobre os equipamentos e processos de produção. O uso de geladeira dá um belo exemplo da nova dinâmica que um espaço feito sob medida para produção propicia: “Por conta das novas geladeiras e espaço maior a gente consegue resfriar mais rapidamente os pães antes de embalar – antes a gente tinha que esperar 4 horas – ganhamos uma hora para produção” explica ela. Os vários ganhos de tempo espaço se traduziram em número maior de fornadas e variedade de pães de forma. E também em mais trabalho: “A gente consegue fazer mais, mas tem mais tarefas também, coisas externas, dá uma enlouquecida, porque a gente ainda faz muita coisa, só a gente sabe vender do jeito que a gente vende.” Há de se ter equilíbrio.
Antes nos despedirmos elas falam de um sonho: “quem sabe aqui rola um café, só com produtos sem glúten, daria até para usar o leite do Purifica”?
A pandemia pode ter colocado em pausa esse plano, e talvez também a perspectiva de mudanças mais profundas no CADEG. Apesar disso, Devas e Purifica seguem a todo vapor por lá, ainda que muitos de seus clientes – cafés e mercadinhos – tenham fechado as portas. “Demos um gás nas vendas diretas no nosso site e outros canais, como a Junta, e assim estamos segurando as pontas”, nos relatou Rafael recentemente.
Nossa visita no CADEG se encerrou, e de lá fomos visitar a fábrica do K. Probióticos num galpão em São Cristóvão, como já relatado aqui. E é de lá que hoje operamos a nossa Sacola Virtual, completando esse giro pelo crescimento tanto da Junta como dos produtores de toda a comunidade.