Por Bruno Negrão

O som sintético dos sinos do VLT ao descer a Rua Pedro Ernesto, na Gamboa, se mistura com o barulho vindo de um galpão cheio de crianças efusivas, umas jogando peteca, outras dançando, algumas com olhos e ouvidos absortos numa história que certamente não terá nenhum príncipe encantado. Junto a elas, suas mães e cuidadoras sujam as mãos de farinha, mexem suas massas atentas as instruções entoadas na mesa próxima a cozinha.

A fachada viva e verde, aberta, repleta de plantas, reflete a atmosfera regenerativa que permeia cada cantinho desse lugar. Um espaço de escuta e cura, uma escola por vir, uma lanchonete. 

Thelma, idealizadora e coordenadora do espaço, é uma legítima força da natureza. Sua fala calma e firme cativa na primeira escuta, e você segue o ritmo de sua consciência transposta em palavras, absorto, enquanto ela te conduz por sua práxis materializada ali, naquele galpão, ao lado da Praça da Harmonia, no coração da Pequena África. 

A Lanchonete Lanchonete começou como um projeto nômade, percorrendo alguns locais como o espaço Saracura, e o Bar Delas, vizinha de rua ali na Gamboa. Em junho de 2019, mobilizou esforços, e garantiu um espaço na forma de um galpão na Rua Pedro Ernesto. Era dado o primeiro passo para inventar uma escola, a escola por vir.  

Na dificuldade de definir cartesianamente o projeto (se é que é necessária tal definição), pode-se afirmar que a Lanchonete Lanchonete é um organismo vivo em constante evolução, um espaço de escuta, acolhimento e que tem a intenção de inventar novas possibilidades de mundo e de ser para as crianças da região. Ponto de convergência de agentes do território, parceiros, artistas, pesquisadores, educadores, ensinadores e aprendizes, que buscam somar esforços na construção de um espaço diverso e múltiplo, um espaço de aprendizado alternativo, permeado por uma visão não hegemônica da realidade. 

Até março deste ano, um abraço forte na Tia Thelma era o ritual de entrada nesse espaço mágico para as crianças da Gamboa. Sofia, Alan, Bia, Gabi, Herick e tantas mais que encontraram ali uma via de acesso a uma nova possibilidade de infância, e de interagir com o mundo ao seu redor. Um espaço seguro para reconhecer, entender e exercer seu direito de ser criança.  A pandemia trouxe um corte abrupto em toda uma dinâmica que vinha se construindo ao longo de muitos meses naquele espaço. 

Foi necessário mapear as possibilidades de uso do lugar para garantir um alento para as crianças e suas famílias na crise que se instaurou. Se a situação de muitas famílias ali no entorno já era precária, a pandemia e a recessão engendrada por ela esgarçou ainda mais o finíssimo lençol de apoio que já mal cobria aquela região. 

Inicialmente organizaram-se ações diretas como distribuição de filtros de água e de alimentos. Um entreposto foi criado servindo como uma espécie de banco de alimentos para as famílias, que tinham a autonomia para decidir o que levar para casa de acordo com suas demandas, e que também serviu de espaço de aprendizagem e troca, com atividades pedagógicas de letramento e matemática. A maior preocupação era criar oportunidades para que cada encontro tivesse uma relação não assistencialista, mas de empoderamento, criando um processo de “transferência de possibilidades de disputar o lugar no mundo de igual pra igual”, como disse Thelma. 

Foi nesse momento em que os primeiros contatos da Lanchonete Lanchonete com a Junta Local se desenharam. No início do projeto da Junta Solidária, distribuirmos um almoço de dia das mães para as famílias das crianças que participavam das atividades da Lanchonete Lanchonete. Nesse dia, conheci a Thelma e de cara começamos a elocubrar possibilidades e interseções que poderiam servir de base para novos processos dentro daquele espaço. Botamos nossas ideias para fermentar, quase literalmente, e vislumbramos a possibilidade de buscar no ensino dos fermentados e suas técnicas uma forma de mitigar os impactos de um sistema alimentar que mais adoece do que restaura. A ideia era utilizar a noção de fermentação para servir como um recurso a mais no combate à  insegurança alimentar em que crianças e suas famílias estão expostas. No meio desse processo, através de uma demanda trazida por algumas das mães, surge a ideia da padaria. 

Ao pensar em fermentados, é inevitável falar de pão, então não foi difícil decidir que nosso primeiro passo seria estabelecer uma plataforma de aprendizado que trouxesse a fermentação natural, e esse saber milenar, como ferramenta de empoderamento para essas mulheres. 

Sem pensar duas vezes, contactei o SandroX da BoulangeRua, “uma micro padaria old school apaixonada por fermentação natural”, que foi peça chave nesse processo. Sua experiência, vontade de ensinar e colar junto foram o fermento ideal para transformar essa demanda num projeto concreto. Ao final de junho começamos a nos reunir, toda quarta-feira, no espaço, criando um ponto de contato direto com as mulheres, rascunhando o método que seria implementado, entendendo as dinâmicas e botando a mão na massa com elas. 

Apurando-se as visões, métodos e intenções, integrando-se com os agentes ali presentes e convergindo esses esforços, foi pensado conjuntamente um programa de formação em panificação, letramento literário e saúde mental que busca atender as mulheres por trás das crianças que já frequentam o espaço. O programa consiste num tripé de ações emergenciais que será conduzido até dezembro,  num formato de projeto piloto.  A intenção é criar um espaço de aprendizado e empoderamento para essas mulheres, que tiveram sua rede de apoio sistematicamente desmanteladas. Aproximando-as de técnicas e processos de produção de alimentos, busca-se formar uma consciência alimentar que as ajude a entender a importância de suas escolhas alimentares, e, gradualmente, se emanciparem do mórbido determinismo de nosso sistema alimentar carregado de veneno. Ao mesmo tempo, o programa conta com o letramento literário, que é um processo de reforço na alfabetização através de uma literatura afro diaspórica, ou indígena, ou ribeirinha, em suma, “através de outras narrativas de mundo que não sejam as narrativas hegemônicas contadas por sujeitos brancos”, como bem define Thelma. Como terceiro elemento do programa, a parceria com um grupo de psicólogos da Casa da Árvore garante tanto para elas, quanto para as crianças, um espaço de apoio, escuta, que busca estabelecer um processo de cura e regeneração de sua saúde mental. 

Um ponto importante que emergiu ao longo desse processo foi a triste (e infelizmente óbvia) constatação que aprender ainda é um privilégio de poucos e que a realidade dessas mulheres não lhes proporciona as condições necessárias para que possam dedicar parte do seu dia a aprender. Atenta a isso, Thelma mobilizou um conjunto de doações que buscava garantir a presença dessas mulheres toda quarta-feira. As bolsas de estudo foram fundamentais para firmar a participação de muitas ali que se viam forçadas a abrir mão de estar lá para garantir alguma renda para suas casas. Com isso, formamos uma turma e nos últimos dois meses assamos focaccias, pães de leite, pão de forma, aprendemos com a Juliana seus afro-pães, com a Isa o bolo zebrado, fritamos sonhos, muffins e mais. 

A hora em que os pães saem do forno é o momento da comunhão. As crianças são tragadas pelo aroma de pão quentinho e rodeiam a mesa esperando ver o que suas mães fizeram dessa vez. Logo em seguida, serve-se o almoço feito a muitas mãos, com ingredientes doados, e vivenciamos aquele momento mágico que a comida é capaz de prover. A mesa, os sorrisos, a troca, todo um aparato virtuoso que faz pulsar a comunhão, que alinha os muitos desejos nesse devir que a cada quarta transforma um pouco mais o espaço e todos que ali estão.

Da formação de uma cooperativa de panificação, a uma padaria comunitária ou apenas resgatar uma antiga prática de sociabilidade que o pão traz consigo, criando um forno comunitário, resgatando a tradição de cultivarem e compartilharem suas iscas (a palavra que foi colonizada e oprimida pelo “levain”), são muitas as possibilidades que se desenham. Estamos no início de um processo que não tem um fim, mas uma direção. Somos mais um caminho, uma estrada de barro que vai se asfaltando, tentando democratizar a possibilidade de sonhar com novos destinos, de construir novas narrativas e formar novas histórias.

Há muito que precisa ser feito para reparar toda dívida histórica que temos com o povo negro desse país, por isso toda e qualquer ação que aponte para essa direção é uma urgência. Se considerarmos ainda todo o simbolismo que a Pequena África tem como um berço cultural da cidade do Rio, ostracizada sistematicamente pelo poder público, a Lanchonete Lanchonete soma-se a diversos outros projetos e iniciativas da região que fazem deste território um espaço de luta e ressignificação, evidenciado pelas palavras de Thelma:

“É um desejo e uma certeza muito grande que são esses micro gestos, essa micropolítica e esses investimentos diários que temos feito que podem promover algum tipo de mudança no tecido social, ao qual estamos incluídos. Somos participantes e aliados das crianças e dos moradores deste e de todos outros territórios que estão excluídos desse projeto de poder que sabemos estar instaurado. Onde nem todas as pessoas são incluídas nessa grande possibilidade de direito a vida, a infância, a liberdade, a alimentação saudável, a um corpo saudável e a circulação em um bairro e uma cidade repletos de possibilidades de inter relação positiva.”

Se você puder e quiser contribuir com a construção desses novos caminhos e possibilidades, doe para o projeto ou adote uma mulher padeira para garantir uma bolsa de estudo para ela. Ajude-nos a fermentar uma nova realidade.

 

Para saber mais sobre a Lanchonete<>Lanchonete acesse o instagram deles por aqui.

As imagens desse post foram feitas em parceria com as crianças Sophia e Herick.