Por Thiago Nasser
Este mês compartilho com vocês um pouco do processo pelo qual passamos recentemente durante a confecção do novo folder impresso da Junta Local, que passou a ser distribuído nas feiras e enviado nas caixas que chegam na casa de quem faz pedidos pelo nosso site. No caso, estávamos tentando resumir em poucas linhas e de forma acessível os conceitos que norteiam a nossa atuação e de que forma nossas plataformas – o site, as feiras e o apoio a produtores – são moldadas de acordo. É muito comum que, em empresas “normais”, seja feito todo um trabalho de apuração dos propósitos e ideias por profissionais ou agências, que traduzem rabiscos em cadernos e flipcharts em guias verbais, branding books e no bom e velho folder institucional. Ainda não tivemos este privilégio. Por aqui o modus operandi sempre foi comunicar com o público de forma menos filtrada, o que muitas vezes resulta em textões (mea culpa máxima) que fariam mais sentido num simpósio acadêmico do que numa peça de marketing. Para poupar nossa comunidade e tornar nossa missão mais clara encaramos de forma conjunta o desafio existencial de olhar uma página em branco e falar pro mundo quem somos e para onde vamos.
Trata-se sempre de um exercício delicado, pois não é tarefa fácil resumir a complexidade do sistema alimentar e de toda a conversa sobre comida a um punhado de rótulos, conceitos e palavras que podem aprisionar o sentido – e muitas vezes de forma excludente. Mas, noves fora os debates semânticos e filosóficos, comunicar é preciso.
Nosso ponto de partida foi uma reflexão a partir do nosso próprio nome, que parece ter resistido bem ao tempo. Para poder mudar o sistema alimentar é preciso juntar, em todas as dimensões: aproximar quem come e quem faz, reunir e agregar todos aqueles que atribuem valor a esse propósito. A dimensão onde isso se dá é o local. Existe uma farta literatura sobre o tema, e de como surgiu o movimento locavorista nas últimas décadas (recomendamos este ótimo texto da Elaine de Azevedo). Continua nos agradando a ideia de que ser local é mais uma questão de processo e visão do que uma qualidade de um ingrediente ou produto. O que importa é a disposição de conhecer a origem dos alimentos (e favorecer os que estão menos distantes), por quem e como foram produzidos. Assim o local se torna algo plástico e com foco no tipo de relação – interações face a face, resgate de mercados de agricultores – do que na quimera de se definir uma milhagem ou de se aprisionar numa definição ou rótulo. No texto da Elaine tem uma ótima citação da Kathy Rudy: “um sonho compartilhado de que podemos recuperar uma relação equilibrada com a natureza através de nossas escolhas alimentares.” Tudo isso não continua muito atual?
Mas como resumir isso? Qual o tipo de comida que resulta quando se “ajunta quem come e quem faz”? No final das contas, na gôndola, na barraca, no site são poucos os segundos dos quais dispomos para comunicar valores. Ao longo dos anos fomos nos apropriando do slogan do Slow Food: comida boa, limpa e justa virou comida, boa, local e justa. No folder decidimos oficializar esse “empréstimo” do movimento que tanto nos inspira. Veja abaixo a forma como descrevemos cada um destes termos.
Boa: “Alimento de boa qualidade, fresco, agradável, saboroso e saudável. Fruto da biodiversidade local, da cultura alimentar e do trabalho de agricultores, artesãos e cozinheiros.” Comida boa é diversa e é compartilhada.
Local: As distâncias não se medem apenas em quilômetros, o local está ligado ao poder de conexão e a relação direta entre quem come e quem faz. Comer local significa poder falar diretamente com produtores, apoiar pequenos empreendimentos e se conectar.
Justa: Queremos devolver a quem faz e quem come a palavra sobre o que é produzido, de que forma é produzido, e o quanto vale. A comida justa é livre de exploração humana, animal e ambiental.
Um outro ponto que sempre surge neste contexto também é a confusão de se pensar que por sermos a Junta Local que todos nossos produtores sejam locais. Essa questão nos perseguiu por algum tempo, mas a nossa recente reflexão sobre o assunto também tornou tudo mais claro. O produtor local, neste sentido literal, claro, é sempre por onde começamos, pois geralmente menor distância significa mais facilidade de interação e conhecimento. E também o local – a cidade, o entorno rural – é o território que precisamos impactar para o bem. No entanto, existem outros “produtores locais” fora deste raio mais exíguo. Um agricultor cooperativado que busca atingir diretamente consumidores em outras cidades também é local. Uma produtora de cacau na Bahia, que planta no sistema de agrofloresta e é responsável por toda feitura da árvore até a barra, é local. Um torrefador de café que conhece cafeicultores e respeita a característica do café é local também. É isto que justifica que, ao passear pelas nossas feiras ou realizar uma busca no nosso site, você encontre produtos que não sejam feitos apenas no Rio de Janeiro. A curadoria que fazemos na Junta Local é a nossa maneira de assegurar que os produtos que você encontra em nossas feiras e plataformas são bons, locais e justos. Pesquisamos, provamos, conversamos e visitamos produtores para garantir que tudo esteja de acordo com os nossos Valores e Princípios. Tem que ser delicioso e não ter veneno, temos que saber quem faz, de onde vem e como é feito. A prioridade é sempre ser local e por isso mais de 80% dos nossos produtos foram feitos no estado. Quando não é possível, buscamos garantir a nossa oferta trabalhando com produtores orgânicos, cooperativas e produtores pequenos e artesanais de outras localidades. Não importa o quão longe, o importante é a conexão.
A comida boa, local e justa não tem fronteiras.
Os textos do nosso boletim desse mês de julho oferecem um belo exemplo de como um produto que praticamente não é produzido no nosso estado, o vinho de uvas, pode ser 100% local. Graças a iniciativas como a Naturebas, é possível conhecer e interagir pessoalmente com vários produtores que fazem parte deste movimento que vem crescendo exponencialmente, como atesta Lis Cereja, idealizadora da feira, na mini entrevista que trazemos esse mês. Em apenas um dia, como é possível ler neste relato, ficamos melhores amigos para sempre de vários produtores que só conhecíamos de rótulo. Esperamos trazer um pouco mais de informação sobre esse incrível universo e ter cada vez mais poder compartilhar esta experiência no nosso site e feiras.
Afinal, o que importa é comida (e bebida) boa, local e justa.