Por Maria Schatovsky
Cozinha, agricultura e trabalho doméstico são ofícios que podem se misturar o todo tempo. Ao assar um pão, ele pode ir para a mesa do café da manhã ou para as cozinhas de restaurante, a horta atrás de casa abastece os ingredientes do almoço e alimenta também as feiras livres da cidade. Muitas vezes essas ações podem parecer a mesma coisa, mas para as mulheres, elas representam mundos completamente distintos. Um é o cuidado com a família, o trabalho reprodutivo, que ainda hoje é feito massivamente, e de graça, pelas mulheres do campo e da cidade. O outro, o trabalho produtivo, que significa renda, autonomia e independência financeira, ainda inserido em um contexto repleto de relações de desigualdade. 

Dentro da nossa comunidade de produtores, a busca pelo suporte às mulheres é uma pauta recorrente de discussão. Como podemos trazer mais mulheres produtoras do campo e da cidade para a Junta Local? Quais são as dificuldades e desafios dentro das diferentes áreas do sistema alimentar que ainda atingem muito mais as mulheres? E como podemos ainda reconhecer e atuar sobre as interseções deste tema com discussões acerca de racismo e gênero. 

Essa semana iremos participar com nossos produtores do Festival AGORA, que se propõe a ser um espaço de diálogo e troca em torno de lutas por direitos igualitários, liderança e afirmação de identidades, principalmente das mulheres. Nesta edição, aproveitando o bicentenário da independência, elas dão protagonismo à participação das mulheres na luta pela emancipação do Brasil. Inspirados por esse tema, sentimos necessidade de escrever sobre cozinha, produção e mulheres no sistema alimentar e aproveitar para conversar um pouco com algumas das mulheres da nossa comunidade. 

Dentro dos produtores do campo da Junta, a Alice Lutz é uma que conversamos muito sobre o feminino dentro da vivência rural. Desde que ela se mudou definitivamente para São José do Barreiro em São Paulo, foram muitos novos desafios acompanhados de descobertas em um labirinto de oportunidades. Os questionamentos de viver sozinha e trabalhar pesado no campo vieram como uma enxurrada. Ela conta, no seu relato “No meu caso, eu envolvo duas forças ligada a alimentação, o lugar da cozinha e da agricultura, e que curiosamente são dois âmbitos que apesar de profundamente femininos e baseados na força feminina para sua construção, acabam sendo valorizados ainda apenas por uma força masculina, apesar disso vir mudando. Temos uma linha de frente de mulheres na agroecologia muito forte, muito ligada a luta feminista hoje”. Sua história atualmente está permeada por belíssimos cultivos agroecológicos acompanhados de recuperação, regeneração e reflorestamento, além do foco em enraizar bibliotecas através do plantio de sementes crioulas, árvores e espécies nativas da biodiversidade abundante da mata atlântica. Em sua fala, Alice também ressalta “a importância de se construir um movimento das mulheres ocuparem seus espaços de direito”.

Apesar disso, o retrato das neo rurais ainda é, muitas vezes, diferente da realidade da maioria das mulheres agricultoras no Brasil. As mulheres de baixa renda e escolaridade que sobrevivem do trabalho no campo ainda sofrem com a discrimição e as dificuldades impostas em relação ao acesso à terra, crédito, insumos e técnicas. Recentemente conhecemos o Sítio Vinhático, um projeto liderado por quatros agricultoras que se conheceram na faculdade e depois de anos prestando apoio a agricultura de outras formas decidiram elas mesmas se mudarem da cidade e se tornarem “neo-campesinas”. O Sítio Vinhático fica no distrito de Bananeiras, em Silva Jardim e paralelamente, elas apoiam uma rede de produtoras do entorno, organizando principalmente a distribuição da produção, como a Denise do sítio Terra Boa e a Michele do sítio Capixaba, localizado no assentamento de Cambucaes.



Olhando para a cidade, as padeiras, cozinheiras, torrefadoras de café e cervejeiras da nossa comunidade deram alguns relatos sobre suas experiências. 

“Ser mulher, produtora e curadora de vinhos é um constante desafio. Enfrentamos todos os dias os desafios e barreiras que o mundo das bebidas alcoólicas nos impõe, majoritariamente pela associação do álcool ao homem e à masculinidade.”
Simone, Vinhos Daqui

“Quando eu e a Dani fundamos a Artemis, queríamos torrar nosso café para termos uma assinatura sensorial só nossa. O mundo dos cafés ainda é tomado pelos homens, da torra ao campo, onde isso se agrava muito mais. Hoje, busco trabalhar com cafés plantados e colhidos por mulheres camponesas.”
Thais, Artemis Torrefação

“Começamos em 2014 e éramos umas das poucas mulheres no mercado cervejeiro e umas das únicas asiáticas. Os olhares estranhos eram comuns, e foi o trabalho contínuo ano a ano trazendo nossas cervejas que refletem nosso universo, e permitiu que conseguíssemos conquistar mais o nosso lugar. Hoje, uma das nossas lutas é, justamente, mostrar que cerveja não tem gênero.”
Maíra, Japas Cervejaria

“O desejo de abrir meu próprio negócio surgiu de uma frustração muito grande por não ter espaço suficiente para crescer nas cozinhas profissionais. Ainda há uma crença limitante de que mulheres não suportam o trabalho braçal e a pressão de um ambiente onde tempo, precisão e técnica precisam estar alinhados em perfeita harmonia. Quase ninguém acreditava que sendo mulher, sem sócios investidores ou uma equipe enorme, eu seria capaz de fundar a Nona. Ser cozinheira, padeira, confeiteira e empreendedora é, além de um gesto de amor, um ato de resistência diário!”
Iona, Nona

“Eu e Rê quando criamos a Cerveja Sem Rótulo queríamos trazer para as mesas de bar uma reflexão sobre o protagonismo feminino, a memória ancestral, tolerância religiosa e resistência das lutas LGBTQIA+ e anti racista. Molhamos a palavra através dos nossos rótulos e ganhamos energia para continuar na nossa luta.”
Luciene, Cerveja Sem Rótulo

Sempre discutimos sobre como a comida é história e não somente dos ingredientes escolhidos e das receitas, mas também das pessoas, culturas e as pressões, interações e marcadores sociais presentes.

Dentro de um contexto onde nós, mulheres, lutamos todos os dias por legislações, reconhecimento e visibilidade, ainda não é possível esquecer aquilo que vivemos e nem quem somos. Ao mesmo tempo, mulheres como as produtoras da nossa comunidade, nos mostram como transformam, através de seus potenciais, nosso sistema alimentar num espaço com mais comida boa, local e justa.