Entre os dias 21 e 24 de outubro a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) sediou o I Encontro Nacional de Agricultura Urbana (ENAU) para discutir e criar articulações entre agroecologia, direito à cidade, feminismo, saúde e comida de verdade com representantes do Brasil inteiro. O encontro imediatamente chamou atenção da Junta Local, que entende a comida como forma de mobilização e conexão com outros movimentos. Nossa colaboradora Liana Rangel esteve por lá e nos conta como foi.
A questão da segurança alimentar e da comida de verdade está em discussão há algum tempo, e cada vez mais integrada com práticas como a agricultura urbana e a educação. Pesquisando um pouco, fui descobrindo de que forma diferentes movimentos e atores estão se mobilizando e organizando.
No topo da organização está o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN). Através desse fórum se iniciaram algumas articulações mais específicas em prol da agricultura urbana, entre elas, a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), que tem uma grande participação e contribuição para o movimento. Nesse contexto, se formou o Coletivo Nacional de Agricultura Urbana (CNAU).
Pois bem, a CNAU junto com a ANA e o FBSSAN organizaram há pouco tempo o I ENAU, primeiro Encontro Nacional de Agricultura Urbana. Essa sopa de letrinhas não soa tão apetitosa e por isso, apesar de ter confirmado presença pelo Facebook, não tinha certeza se iria ou não. Mesmo assim resolvi participar e foram três dias de uma das experiências mais ricas dos últimos tempos.
O objetivo do evento foi reunir atores da Agricultura Urbana (AU) no Brasil e promover um debate sobre as diferentes práticas de AU e os conflitos nos espaços urbanos relativos a elas. Certamente o objetivo de reunir atores foi cumprido — havia 250 representantes de praticamente todos os estados do Brasil. Substantivamente, o tema seria debatido através de painéis, oficinas, instalações pedagógicas, visitas às iniciativas existentes no Rio e uma feira agroecológica cheia de produtores e projetos incríveis desses estados. A comida não poderia deixar de ser importante num evento como esse. Além das atividades principais, os participantes eram recebidos com café da manhã orgânico, organizado por mulheres cariocas, e todos os produtos eram de pequenos agricultores também aqui do Rio.
Na área externa do evento, durante o dia inteiro, acontecia a Feira Agroecológica e Cultural: Cultivando Saberes e Sabores nas Cidades, um espaço para exposição e vendas de produtos da agricultura urbana de todo Brasil. Agricultores/as urbanos/as mostraram a diversidade e os sotaques regionais da cultura brasileira. Com muitos produtos, frutos da produção da agricultura familiar camponesa em diferentes contextos sociais e territoriais das cidades, a feira foi mais que um lugar de vendas, ela encheu a UERJ de tempero e sabor. Cada barraca era uma oportunidade de conhecer melhor e descobrir que existem no Brasil iniciativas de agricultura urbana, gestão do lixo, cultivo de mudas e a diversidade cultural do Oiapoque ao Chuí.
No primeiro dia, traçou-se um panorama da agricultura urbana no Brasil e das discussões já levantadas no FBSSAN. Para quebrar o gelo, logo no começo, todos os participantes foram convidados e se levantarem e abraçarem o seu colega, o que ajudou a dar o tom de fraternidade e entendimento em relação ao próximo. Após essa introdução, todos os participantes, divididos em grupos, foram para as instalações pedagógicas de cada estado. Cada instalação explicava questões e práticas específicas, apresentando os protagonistas envolvidos, os principais temas aglutinadores e também os avanços, oportunidades, dificuldades e ameaças. Cada um tinha a liberdade de escolher a ferramenta que preferisse: teve música, adivinhação de sementes da caatinga, banana sem agrotóxico de sítio carioca e por aí vai. A metodologia utilizada chama-se Carrossel de Experiências, e fez com que cada grupo com cerca de 25 pessoas percorresse as diferentes instalações.
Dessas vivências, sem dúvida, a instalação carioca foi a que mais me fez refletir, pois o Rio, apesar de ter três grandes áreas verdes (Parque Nacional da Tijuca, Parque Estadual da Pedra Branca e Mendanha) e uma considerável porém desconhecida atividade agrícola, não possui políticas públicas para a agricultura urbana. Existe, por exemplo, uma pedreira na Serra da Misericórdia com explosões diárias no meio da Zona Norte. Na Zona Oeste, grandes indústrias como a TKCSA e a Bayer poluem o ambiente e inviabilizam a agricultura. É dentro dessas grandes áreas verdes que temos a maior parte dos agricultores do Rio, principalmente na Pedra Branca. Por outro lado, há iniciativas que dão esperança. A Rede Carioca de Agricultura Urbana, junto com as feiras orgânicas, promove em diversos bairros da cidade espaços onde esses agricultores podem vender seus produtos.
No segundo dia, iniciamos com um painel sobre direito à cidade e comida de verdade. Neste painel os participantes buscaram estabelecer relações entre a agricultura urbana e dois temas centrais de discussão do encontro: a Segurança Alimentar e Nutricional e o Direito à Cidade. Essa dinâmica foi formada por diversos representantes, com emocionantes depoimentos das iniciativas e dificuldades que muitos ainda passam — por exemplo, conflitos ainda existentes no interior de muitas cidades, como foi o caso de uma agricultora mineira que relatou ameaças de prisões arbitrárias da prefeitura da cidade onde mora. E na mesa estava uma das mais antigas moradoras da Vila Autódromo, comunidade que vem sendo removida por conta da construção do Parque Olímpico. A questão do direito à cidade ainda está no básico, que é o direito ao seu espaço.
No terceiro dia, a discussão abordou políticas públicas para a Agricultura Urbana, com o tema: Qual Política de Agricultura Urbana queremos?. A parte que mais me impressionou ocorreu durante a tarde, quando integrantes da CNAU fizeram a leitura da carta política do encontro com um ato feminista. Inclusive, ao longo de todo o evento, a bandeira do feminismo foi levantada muitas vezes, em faixas, gritos de guerra, rodas de conversas entre as participantes, com uma plenária só entre mulheres no último painel num emocionante ato. Nesse último painel, ficou bem claro que a questão está sendo levada a sério por diversas esferas públicas, mas que muito ainda precisa ser feito.
O que ficou desse encontro? É que iniciativas como a Junta não estão sozinhas, nem um pouco. Que o país todo está pensando nessa relação, nos alimentos, na forma como são produzidos, quem o faz e assim vai. E quanto mais encontros e atividades com trocas riquíssimas de experiências, mais fortalecida fica essa rede e mais se abre o potencial de mudanças estruturais.
Afinal, é muito melhor todo mundo ajuntado e mobilizado.